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2. Hong Kong

Turn Left, Turn Right
Dragon Loaded
«Turn Left, Turn Right» e «Dragon Loaded»: comédia para lá do racional e do bom senso, em registos diferentes.
A produção de Hong Kong continua longe da época dourada que terminou em meados dos anos 90, antes da retrocessão do território para a China, mas os últimos anos têm trazido sinais de recuperação, com o esmagador sucesso de filmes como «Shaolin Soccer», em 2001, e «Infernal Affairs» em 2002. As sequelas deste último título não replicaram o nível de sucesso do original mas não deixaram de encimar o top de bilheteiras de 2003. «Running on Karma», um título arriscado de Johnnie To Kei-fung e Wai Ka-fai, conseguiu vencer nas bilheteiras. Actualmente, o que promete contribuir para o crescimento da indústria local é o mercado do continente, com a recente abertura que permitirá que muitos filmes passem a ser considerados "chineses" e distribuídos na China livres de constrangimentos de quotas, desde que sejam feitos em regime de co-produção e respeitem determinados pré-requisitos. Até agora, as obras de Hong Kong estavam equiparadas às estrangeiras e tinham de lutar para serem incluídas no pequeno grupo de 20 filmes estrangeiros que podiam ser exibidos na RPC durante o ano.

A selecção de filmes de Hong Kong pareceu-nos tanto a mais representativa da produção recente do território como também a mais diversificada — e, neste âmbito, 11 filmes constituíram uma quantidade apreciável. Assim, vimos duas comédias disparatadas («Dragon Loaded» e «Men Suddenly in Black») um melodrama («Lost in Time»), uma comédia romântica («Turn Left, Turn Right»), thrillers policiais («Infernal Affairs», tomo 2 e 3), e os mais virados para a acção («Color of the Truth» e «Heroic Duo»). Sobra «Running on Karma», o mais incategorizável de todos... Só faltou uma ou outra produção "Categoria III", um "género" que parece andar particularmente em crise.

Começando pelos títulos mais ligeiros, em «Daai Cheung Foo/Men Suddenly in Black» quatro homens organizam-se para aproveitar algumas horas de "liberdade", quando as mulheres viajam até à Tailândia, para cometerem adultério — seja com conhecidas de outros tempos, seja com profissionais do sexo. Não é a moral que impede o filme de chegar a ter graça, mas a própria execução, que se esforça demasiado por executar a premissa. A ideia nem é desengraçada, constrói-se o filme como se se tratasse de um filme de género, de gangsters, com os trajes, as atitudes, o planeamento rigoroso do "golpe", o modo de filmar, etc. Há uma cena, por exemplo, em que os "criminosos" tentam escapar a máquinas fotográficas, onde se usa câmara lenta e as lentes passam por armas. Infelizmente, o filme é infantil, ao ponto de ser embaraçoso. Uma opinião que não é, naturalmente, unânime.

Dirigida por Edmond Pang Ho-Cheung, «MSIB» é uma comédia negra inteligente que parte de uma premissa algo gasta (4 homens planeiam enganar as respectivas senhoras); surpreendendo pela sagacidade e capacidade em glosar com alguns clichés do próprio cinema de Hong Kong, traçando um paralelo risível aos filmes de gangsters e tríades, seja colocando os actores principais a vestir como Chow Yun-fat em «A Better Tomorrow», ou quando assistimos a um estranho duelo/bailado de “mangueiradas” em câmara-lenta. Entretenimento vintage.HFG.

[vd. encontro com Pang Ho-cheung]

«Lung Gam Wai 2003/Dragon Loaded», por outro lado, é disparatado do início ao fim e, não sendo exactamente maduro, também não assenta em nenhum conceito cuja realização implique um falhanço ou um sucesso. É fácil de o comparar a um qualquer «Academia de Polícia» (esses clássicos da comédia), com três jovens mimados a terem de suportar o trabalho policial com o risco de serem deserdados pelos pais. Diverte enquanto dura, mas não perdurará na memória. Assinala-se a presença de Ronald Cheng Chung-kei, referido com um nome e um rosto a ter em atenção para os próximos tempos e que parece caminhar para ser um novo Stephen Chiao Sing-chi.

Outra atenção merece a trilogia «Miu Gaan Diy/Infernal Affairs». O ano passado, o filme original foi o vencedor do FEFF, pelo que não podia deixar de haver alguma expectativa quanto às sequelas. Os tomos seguintes não terão desiludido, mas não se conseguiram aproximar do enorme sucesso de crítica e de público do original. O terceiro foi inclusivamente projectado numa sessão matinal, com base no previsível menor interesse por parte do público.

Tony Leung Chiu-wai
Leung Chiu-wai, um rosto central na trilogia «Infernal Affairs».
O original narrava a duplicidade e cumplicidade entre duas personagens assombradas: Tony Leung era Yan, um polícia infiltrado no outro lado da barricada, como lugar-tenente do chefe das tríades, Eric Tsang; Andy Lau era Ming, uma “toupeira” infiltrada por Tsang no corpo policial de Hong Kong, chefiado pelo temerário superintendente Anthony Wong. Rodado como uma “prequela” do original, «IA2» encontra as personagens principais do original com menos 10 anos, em 1991, antes da “entrega” à China. O tema da identidade e divisão entre Bem e Mal que atravessa as personagens ganha em «IA2» uma sensibilidade épica que o primeiro nunca atinge, destilando-se ao longo do filme reverências claras à trilogia “O Padrinho”, bem visível no processo de recrutamento na academia de polícia.

Entre a megalomania de um projecto tríptico, «IA2» é o quadro de todos os excessos – simultaneamente homérico e coruscante, negro e tortuoso, pulsante e ondulante (com os seus inúmeros enredos e atropelos narrativos). Anthony Wong e Francis Ng sobem aos píncaros com desempenhos notáveis.

«Infernal Affairs III» é o mais psicológico e auto-consciente dos três. Aqui assistimos à degradação psicológica de Andy Lau, atormentado pelo “fantasma” omnipresente de Tony Leung. Em termos narrativos, a história é semelhante ao primeiro capítulo, culminando com reviravoltas e mecanismos que empresta directamente de «IA1». Andy Lau vai caminhando progressivamente para um estado de esquizofrenia, no qual se imagina como o “good guy”, aka, Tony Leung. Nesse domínio, o terceiro capítulo relativiza o aspecto subversivo do primeiro filme, que capitalizava em perverter o destino óbvio das personagens (afinal, havia uma delas que era “boa” e outra que era “má”, por definição, maquiavélica ou não). Pende sob as personagens de «IA3» um ensurdecedor cansaço e vazio interior. HFG

Colour of the Truth
«Colour of the Truth»: Anthony Wong Chau-sang em forma.
Não foram raras as referências a «Hak Bak Sam Lam/Color of the Truth», como tratando-se de uma colagem a «Infernal Affairs». Isto não foi um zumzum iniciado por parte dos seus detractores, aparentemente, antes uma intenção deliberada do distribuidor se colar ao sucesso da trilogia, ou não se tratasse de um filme de Wong Jing (co-realizado com Marko Mak Chi-sin). Passá-lo como um "rip-of" de «Infernal Affairs» é não fazer justiça a um policial equilibrado, que começa com a morte de um gangster e um agente infiltrado (com cameos de Lau Ching-wan e Francis Ng Chun-yu). Raymond Wong Ho-yin interpreta o filho de Lau, agora também ao serviço da lei e que o argumento tratará de colocar sobre as ordens do homem que supostamente matou o pai (um papel oferecido ao veterano Anthony Wong Chau-sang). A narrativa desenvolve-se com um negócio de tráfico de droga, um perigoso gangster tailandês e a necessidade da polícia proteger um ricaço de Hong Kong — envolto em negócios obscuros, como não poderia deixar de ser. Um texto bem construído, polvilhado por algumas cenas de acção. Wong Jing já prometeu uma prequela, com Lau Ching-wan e Ng, como não poderia deixar de ser. E se resultar na bilheteira, haverá mais uma razão para fazer a comparação com «Infernal Affairs», porque a seguir só fica a faltar a sequela propriamente dita.

«Seung Hung» [«Heroic Duo»] é a enésima variação do típico “buddy movie” reminiscente de «Running out of Time» de Johnnie To e «O Fugitivo» de Andrew Davies. Ekin Cheng é um polícia que comete um crime sob hipnose, sendo obrigado a fugir e simultaneamente provar a sua inocência. Leon Lai é um reputado mestre na técnica de hipnose mediante a exploração dos medos pessoais mais recônditos (?), que se encontra actualmente a cumprir uma pena de 15 anos por alegado assassinato. Nada de novo neste história de polícias e ladrões pejada de elementos de machismo “soft”. HFG.

Lost in Time
«Lost in Time», de Derek Yee (Harashima Daichi, na foto).
«Mong Bat Liu/Lost in Time» é realizado por Derek Yee Tung-sing, de «C'Est la Vie, Mon Chéri» e «Viva Erotica». Depois da morte do noivo, condutor de minibus, Holly Lam (Cecilia Cheung Pak-chi) faz-se à vida, insistindo em recuperar o veículo e tomar a posição do falecido, ao mesmo tempo que têm de tomar conta da criança que ele deixou. O trabalho é duro e é difícil de lidar não só com os colegas e concorrentes como também com os criminosos que estabelecem quais as zonas onde se pode operar. Hale (Lau Ching-wan) é um motorista veterano que vai tentar ajudá-la. Um melodrama equilibrado e sólido, sustido nas interpretações de Cheung e Lau, rodeados por bons secundários, como o veterano Paul Chun Pui e do pequeno Harashima Daichi.

Uma vez que não vimos «Luk Lau Hao Joh/Truth or Dare: 6th Floor Rear Flat», nem «Dut Hiu Yuet Yuen/Elixir of Love», de Hong Kong ficam a sobrar os dois filmes da dupla To-Wai, «Heung Joh Chow Heung Yau Chow/Turn Left, Turn Right» e «Daai Chek Liu/Running on Karma», que, por acaso, são também os melhores títulos deste lote, ainda que sejam de registos completamente diversos. O primeiro é uma comédia algo esparvada, mas longe do slapstick, assente no conceito de duas linhas paralelas que parecem destinadas a cruzarem-se. Kaneshiro Takeshi e Gigi Leung interpretam duas pessoas (naturalmente) destinadas a ficarem juntas: descobrem que se apaixonaram em crianças, mas o destino impediu o contacto. Treze anos depois voltam a encontrar-se, mas não é que a chuva apaga os números de telefone acabados de anotar num pedaço de papel? Esqueçam o realismo: os protagonistas moram ao lado um do outro (!) e passam a vida a cruzarem-se sem se encontrarem. Acrescenta-se mais um casal — uma criação dos argumentistas, não existente no material original, a história ilustrada de Jimmy Liao — para radicalizar mais ainda o humor, como interesses românticos ou anti-românticos cruzados. Funciona enquanto romance ("chick flick", diriam alguns), mas também como comédia. No fundo, um grande filme, independentemente do rótulo. Rodado em Taipei, em mandarim, com capital da Warner.

[vd. encontro com To Kei-fung e Wai Ka-fai]

Running on Karma
Andy Lau num fato de borracha («Running on Karma».
Andy Lau é Big, um ex-monge budista, que ganha agora a vida como dançarino nocturno num clube de strip-tease devido ao seu corpo excepcionalmente musculado (é um fato de latex!). Big abandonou a vida monástica há alguns anos, após a tragédia que vitimou a sua namorada. Desde então, Big vive atormentado por uma percepção divinatória, a capacidade de prever e visualizar o momento prévio à morte de um indivíduo e os acontecimentos ocorridos nas vidas anteriores que estão na génese do Destino (karma). Num raid ao clube nocturno de Big, a agente da polícia Lee Fung-yee (Cecilia Cheung Pak-chi) persegue um assassino contorcionista e esguio até às ruas de Hong Kong. Big envolve-se nas investigações policiais, ao descobrir que – numa das suas visões – Fung-yee está marcada para morrer.

Metafísico e filosófico, «Running on Karma» é uma obra inesperadamente compensadora e revulsiva, simultaneamente cómica e trágica, que mescla diversos géneros de forma desassombrada e subversiva. É uma fábula pós-moderna sobre heróis condenados à procura da redenção final, sem falsas esperanças. Johnnie To e Wai Ka-fai guiam-nos ao ponto de não retorno. HFG.

Continua

3ª Parte: Japão

7/06/04

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Capítulos
Encontros
1. China
2. Hong Kong
3. Japão
4. Coreia do Sul
5. Tailândia
6. Filipinas
1. Japão - Ichikawa Jun e Kaneko Fuminori
2. Coreia do Sul - Bong Man-dae e Lee Eon-hee
3. China - Zhou Xun e Li Shaohong
4. Final - Johnnie To, Wai Ka-fai, Pang Ho-cheung,
Motohiro Katsuyuki e Kang Je-gyu
cinedie asia © copyright Luis Canau.