Infiltrados/Miu Gaan Diy/Infernal Affairs
無間道 (wú jiān dào)
Realizado por Andrew Lau Wai-keung e Alan Mak Siu-fai
Hong Kong, 2002 Cor – 97 min. Anamórfico.
Com: Andy Lau Tak-wah, Tony Leung Chiu-wai, Anthony Wong Chau-sang, Eric Tsang Chi-wai, Sammi Cheng Sau-man, Kelly Chen Wai-lam, Edison Chen Koon-hei, Shawn Yue Man-lok, Elva Hsiao Ah-in
drama crime
Capa DVD
Chan Wing-yan (Yue/Leung) é seleccionado na escola de cadetes da polícia de Hong Kong para ser uma “toupeira” infiltrada no submundo do crime. Lau Kin-ming (Chen/Lau) é um dos homens da tríade de Sam (Tsang), seleccionado para se alistar na polícia. Dez anos depois, Yan quer deixar de ser um agente infiltrado, assumir-se como polícia e dar início a uma vida normal. A pressão leva-o a comportamentos erráticos e violentos e é forçado a frequentar sessões de psicanálise com a Dra. Lee (Chen). O agora Inspector Lau é um respeitado oficial do Gabinete de Crime Organizado e Tríades (OCTB), apesar de continuar a trabalhar para Sam. O sucesso da carreira e a mudança para um novo apartamento com a namorada Mary (Cheng) são factores que o levam a repensar a sua posição entre a lei e o crime. Entretanto, polícias e criminosos começam a caça às toupeiras.

«Infernal Affairs» é um thriller criminal criteriosamente manufacturado, do texto à fotografia, passando pela (excelente) selecção do elenco, com dois actores de primeira linha, acompanhados por dois óptimos secundários (Anthony Wong e Eric Tsang). Na sua essência, a narrativa não nos traz nada de novo; agentes infiltrados, com problemas de integração num e noutro lado da lei, não são raros mesmo fora do cinema de Hong Kong (aqui ocorrem-nos duas interpretações de Chow Yun-fat – em «Laat Sau San Taam/Hard-Boiled», 1992, e «Lung Foo Fung Wan/City on Fire», 1987, esta última adaptada por Tarantino para «Cães Danados/Reservoir Dogs», com Tim Roth na posição de Chow). A relação entre os dois homens, em conflito gerado por motivos profissionais, com espaço para alguma admiração e respeito (mútuo ou não), também é um tema clássico (para não dizer cliché), mas o argumento de Alan Mak e Felix Chong Man-keung adiciona mais algumas camadas, nomeadamente o menos usado ingrediente do tríade infiltrado na polícia. Não sendo raro vermos um polícia corrupto ou a colaborar directamente com os criminosos, é menos frequente que surja como um verdadeiro agente infiltrado e treinado para esse fim.

Wong, Leung
O Superintendente Wong é a única ligação de Yan com a polícia.
Andrew Lau dirigiu um filme que se leva a sério do início ao fim, com o acento tónico no desenvolvimento do texto e no conflito (interno e externo) das suas personagens. Leung e Lau conseguem transmitir-nos as agruras do inferno que calcorreiam no dia-a-dia, ainda que em planos diferentes; o primeiro aproxima-se e revela-se mais ao espectador, enquanto que o Ming de Lau se apresenta algo indefinido até perto do final, quando tem de tomar decisões irrevogáveis. O inferno de Yan é mais óbvio, o seu trabalho no seio da tríade torna-se insuportável, enquanto o de Ming é mais um estado de espírito, um dilema moral, mas também a forte consciência de poder deitar tudo a perder (o filme ilustra uma vida cada vez mais perfeita, com a promoção e o novo apartamento). Tal é reflectido nas interpretações dos dois actores, sendo natural que Leung Chiu-wai se destaque (ganhou o prémio de interpretação masculina nos Hong Kong Film Awards). Mas Lau, num desempenho contido e subtil, transmite satisfatoriamente os constrangimentos da sua personagem e sobretudo a sua indefinição (a milhas dos esgares infindáveis e do overacting indigerível em «Chuen Chik Saai Sau/Fulltime Killer»).

Wong Tsang
Wong, com ajuda de Yan, procura encurralar Sam, que, por sua vez, recorre aos préstimos do seu homem no interior do OCTB.

A «Infernal Affairs» podem-se anotar mais atalhos narrativos e o subdesenvolvimento de certos segmentos do que propriamente falhas. O filme poderia beneficiar com um regresso (mais para o final) à relação entre Ming e Mary e com a apresentação mais desenvolvida de determinadas revelações, que podem parecer tiradas do bolso no momento ideal (sentimos que houve um esforço em não deixar a duração ultrapassar demasiado os 90 minutos da praxe). Por outro lado, há subentendimentos que acabam por funcionar na perfeição, como a relevância da personagem da estreante Elva Hsiao. É certo que as três personagens femininas se podem confundir com “ramos de flores” por terem muito pouco tempo de ecrã, mas May surge pelo tempo suficiente e nos momentos adequados para reforçar o drama. Já os enlaces românticos se vão submeter à vertente thriller. Mary enforma o elemento essencial que pressiona Ming, tal como a Dra. Lee representa, no fundo, o cerne da “vida normal” que Yan almeja e persegue.

Chen
Pelo olhar podemos ter a certeza de que a Dra. Lee é uma excelente profissional (Chen Wai-lam, acima).
O argumento apresenta-se de forma precisa, rigorosa, quase matemática, pelo que nos vemos constrangidos a usar o termo “reviravolta” para nos referirmos a um par de surpresas ou choques com que somos confrontados. A severidade com que o material é moldado, confere grande credibilidade a esses momentos, que nos surgem como mero acaso ou consequências naturais de uma decisão tomada. Consegue-se também, curiosamente, gerar uma reacção de frustração perante alguns acontecimentos ao mesmo tempo que somos levados a questionar certos conceitos de “final feliz”. Nesse plano, o final alternativo, aparentemente criado para satisfazer as autoridades da RPC, e destinado à estreia nesse território, afere-se com redobrada inadequação.

É preciso notar que não estamos perante um filme de acção, nem Andrew Lau se preocupou particularmente com a gestão dos momentos mais movimentados por entre o diálogo. É uma obra que vive da tensão criada por um jogo de gato e rato onde se torna difícil saber quem assume qual posição no tabuleiro e a atmosfera criada pela montagem, música e cuidada fotografia (de Andrew Lau e Lai Yui-fai; Christopher Doyle, que ganhou o troféu nos HKFA por «Ying Xiong/Hero», trabalhou no filme durante alguns dias e recebeu um crédito de consultor visual), aliada ao excelente elenco, combinam-se para tomar a forma de um grande thriller, fadado a tornar-se uma referência durante os próximos anos (e, aparentemente, mas não surpreendentemente, um filme americano protagonizado por Brad Pitt).

Lau
A metáfora do sofrimento ininterrupto é introduzida no texto de abertura, que se refere ao pior dos Oito Infernos – o Inferno Contínuo. É desse conceito que decorre o título original em chinês (wujian dao – via ou caminho infinito, sem fronteiras). Em «Infernal Affairs», cedo se estabelece que a saída dessa via de infindáveis tormentos conduz a um conflito mortal.

4,5
Deauville 2003. Disponível em DVD de Hong Kong (Mega Star, R0), com um segundo disco separado para extras: making of (legendas só em Chinês), trailers, o vídeo musical da canção interpretada por Lau e Leung (cantonês e mandarim) e uma extensa galeria de imagens, incluindo posters, para além do habitual texto com notas variadas e biografias (também em inglês). O disco principal contém o filme numa transferência vídeo anamórfica excelente, acompanhada por pistas áudio DTS e Dolby Digital. Há também um comentário áudio não legendado. O final alternativo pode ser visto em separado ou seleccionado ao arrancar o filme. Saiu também numa edição limitada a 3000 exemplares que adicionou uma capa de cartão prateado em redor do disco, onde se incluí igualmente a versão BD do filme em 64 páginas (em chinês, obviamente), seis postais, cada um com uma personagem (as meninas não tiveram direito a postal) e um certificado de autenticidade numerado e “autografado” pelos quatro actores principais. A assinatura é impressa; custaria muito assinar 3000 cartõezitos?

O DVD nacional (LNK) contém uma versão dobrada em inglês, apesar do filme ter sido exibido nos cinemas na versão original. Não deixa de ser irónico, tendo em conta que «Infernal Affairs» foi distribuido em DVD na sua versão original nos EUA e no Reino Unido.

publicado online em 6/6/03

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