Siu Lam Juk Kau/Shaolin Soccer
少林足捄 (shăo lín zú jiù)
Realizado por Stephen Chow Sing-chi
Hong Kong, 2001 Cor – 112 min.
Com: Stephen Chow Sing-chi, Vicky Zhao Wei, Ng Man-tat, Patrick Tse Yin, Wong Yut-fei, Law Kar-ying, Cecilia Cheung Pak-chi, Karen Mok Man-wei, Vincent Kok Tak-chiu, Li Hui
comédia artes-marciais
DVD
Fung (Ng), uma estrela do futebol na sua juventude, deitou a carreira a perder devido à sua ganância, e é, actualmente, um simples auxiliar de uma grande equipa, constantemente humilhado pelo presidente, Hung (Tse). O seu desejo é alcançar uma função de treinador, mas Hung apenas lhe cria tais expectativas para o poder humilhar mais. Sing (Chow), um vagabundo cheio de optimismo, deseja promover e reavivar o kung fu de Shaolin, na Hong Kong dos dias de hoje, procurando uma fusão com uma actividade popular, como a música, mas nada parece funcionar. Do encontro de Fung e Sing surge a ideia de treinar uma equipa de futebol, com base no kung fu de Shaolin, e inscrevê-la no campeonato. Para tal, Sing precisa de recrutar os seus "irmãos" (cinco homens que estudaram sob o mesmo mestre), cujas vidas não levam o melhor rumo, para além de estarem longe da forma de outros tempos.

少林功夫好。。。 trad na legenda na foto abaixo

Chow Sing-chi é o mais popular comediante a trabalhar em Hong Kong, tendo no seu currículo títulos como «A Chinese Odyssey», «Justice, My Foot» ou «God of Cookery», o último dos quais levou Jim Carrey a considerar [bocejo] um remake americano. A comédia chinesa constitui um género mais difícil de ser transportado para o Ocidente, uma vez que se baseia grandemente em trocadilhos linguísticos, mais ou menos subtis, que as legendas raramente conseguem capturar (se é que tentam). Em comédias de kung fu, o espectador ocidental pode sempre apreciar a acção e fazer fast-forward nos momentos de impenetrável comédia fundada em diálogos. «Shaolin Soccer», por seu lado, é um filme cujo sucesso assenta na componente visual e nos disparatados (por vezes low-budget, mas sempre funcionais) efeitos digitais, destinados a ilustrar uma série de proezas, raramente vistas em aborrecidos jogos de futebol.

Musical
Número musical: "o kung fu de Shaolin é fixe".
«Shaolin Soccer» foi um grande sucesso comercial na Ásia, tendo sido, infelizmente, comprado pela Miramax/Disney, que o distribuirá na América do Norte e provavelmente na maior parte do hemisfério ocidental. Infelizmente, porque, como é do conhecimento geral, a Disney e os seus ramos corporativos, não estão interessados, de todo, em fazer chegar a mais pessoas novas propostas em termos de cinema asiático: simplesmente vêem algo que lhes agrada num produto e transformam-no em algo o mais próximo possível do que esse produto seria se tivesse sido feito de raiz nos EUA. Assim, para além da censura "normal" de cenas consideradas demasiado violentas para a classificação requerida, removem-se referências culturais que – segundo eles – a audiência não conseguiria perceber, remonta-se, substituem-se os créditos originais, cria-se novo score musical e dobra-se em inglês. Como tem sido apanágio da corporação do Rato Mickey, não só não se fornece possibilidade de escolher – nem sequer em DVD, o formato que, ironicamente?, os estúdios venderam (também) com base na possibilidade de se aceder a diferentes pistas de som e diferentes versões num mesmo disco –, como ainda se perseguem as lojas sedeadas nos EUA que tenham o desplante de vender versões importadas com o filme original (algo que pelo menos a Columbia, que tem editado versões originais de muitos filmes asiáticos, não se dá ao trabalho de fazer).

Zhao
Mei (Zhao Wei), uma padeira que usa Tai Chi para produzir os melhores pãezinhos da zona.
Este comportamento tem levado à ira dos cinéfilos amantes das cinematografias orientais, que se organizaram num lobby para tentar fazer ver a Disney de que há muitos interessados em dar-lhes dinheiro, desde que as versões originais também sejam disponibilizadas. Esta iniciativa está centralizada no site http://www.hkfilm.net/disney/. Entre os métodos de protesto conta-se uma petição (já com largos milhares de assinaturas), uma campanha de cartas e telefonemas e o envio de e-mails a sites de crítica, sugerindo que informem os leitores que o texto de refere a uma versão incompleta do filme, já que estes pormenores normalmente passam ao lado dos críticos norte-americanos. Quando vir um «Futebol de Shaolin» no seu clube de vídeo, com o texto "versão original em inglês legendada em português", ou similar, no verso, já sabe com o que pode contar. A culpa, claro, nem será (completamente) do distribuidor nacional, que se limita a editar os filmes que lhes mandam, e não tem nenhuma obrigação de defesa cultural a sobrepor-se ao desejo e necessidade de realizar lucros, mas enquanto estes títulos forem comprados e alugados, mais dificilmente as versões originais serão disponibilizadas. Entretanto, já se publicaram algures listas com os inúmeros cortes feitos pelo estúdio americano, aplicados tanto ao humor como à violência.

Equipa
Da esquerda para a direita: L, O, S, E, R.
Ao ver «Shaolin Soccer», depois de um período em que os filmes mais notórios produzidos em Hong Kong eram comédias ou filmes de acção, baseados em efeitos especiais, que se tentavam aproximar dos produtos de Hollywood, poderemos recordar-nos da loucura que caracterizava algumas produções de Hong Kong, durante o seu período áureo, do início dos anos 80 até meados dos anos 90. É verdade que o filme de Chow assenta fortemente em efeitos digitais (CGI) para transmitir o seu humor, mas a tecnologia gráfica é empregue de um modo deveras refrescante, deixando de ser relevante a perfeição da sua execução (muitos dos efeitos, em particular as bolas de futebol digitais, deixam um pouco a desejar). Isto acontece porque os efeitos são chamados a ilustrar toda a espécie de consequências disparatadas do kung fu empregue num campo de futebol e onde jogadores a serem projectados para fora do campo se torna um ingrediente vulgar depois de alguns minutos. Para lá da utilização de CGI, há que dar mérito ao trabalho que está por baixo, i.e., a coordenação de acção (e de fios) de Ching Siu-tung.

Pig in Space
Banzai
Algumas violações das regras da FIFA.
Chow desenvolve humor com base nas habilidades específicas de cada um dos "irmãos". À boa maneira do cinema tradicional de artes marciais, temos uma série de alcunhas que reflectem as capacidades desenvolvidas por cada um, a serem aplicadas no contexto de uma equipa de futebol (traduções livres): “Cabeça de Ferro”, “Mãos Vazias”, “Camisa de Ferro”, “Vestes Leves” e “Perna-em-Gancho”. Claro que nem tudo serão rosas, pois os irmãos estão a precisar de algo mais do que treino intensivo; “Vestes Leves”, por exemplo, outrora um jovem magrinho, é agora um cidadão cujo excesso de peso e atitude perante a vida lhe valeram a nova alcunha de “Porco Preguiçoso”.

Seguindo uma estrutura mais ou menos convencional, vemos os nossos heróis no ponto mais baixo das suas "carreiras", humilhados, espezinhados, espancados, seguindo-se a preparação e a iluminação que lhes permitirá recuperar o amor-próprio e o kung fu (mais no sentido espiritual do que físico). Naturalmente, nem tudo serão facilidades e a dificuldade dos jogos irá aumentar gradualmente, até enfrentarem a equipa high-tech de Hung. Durante este percurso há lugar para diversos momentos divertidos, incluindo uma participação especial das actrizes Cecilia Cheung Pak-chi e Karen Mok Man-wei, ridiculamente maquilhadas.

Maquilhagem pouco lisonjeadora é algo que não tem assustado algumas actrizes de Hong Kong; «Irresistible Piggies», produzido este ano pelo mestre do baixo nível, Wong King, apresenta as actrizes Michelle Reis, Karen Mok, Suki Kwan Sau-mei e Kelly Lin Hsi-lei transformadas em verdadeiros ogres. «Love on a Diet» (2001), de Jonhnie To Kei-fung e Wai Kai-fai, conta com Andy Lau Tak-wa e Sammi Cheng Sau-man, com várias dezenas de quilos a mais, envoltos em maquilhagem que lembra o Michelin Man. Em «Shaolin Soccer», Zhao Wei (de «Tin Hoa Mou Soeng/A Chinese Odyssey 2002»), que encarna o papel de uma empregada de uma pequena loja, onde usa tai chi para confeccionar uns pãezinhos deliciosos, tem o rosto afectado por um caso de acne galopante. Chow parece desenvolver um fetiche qualquer por "beleza alternativa" ou tenta contrariar os clichés de beleza feminina convencional. A actriz surge por breves momentos com um ar "normal", mas passa por três encarnações muito afastadas das imagens promocionais que costumam ilustrar posters, incluindo uma em que parece a versão pantomina da Princesa Margarida (referência semi-obscura). Zhao é aqui uma espécie de "interesse romântico", mas a personagem é insuficientemente desenvolvida no filme, restando um momento sentimental, muito bem confeccionado, quando Chow prova um pãozinho, agora salgado e amargo, que quase chega a ser tocante, mas que fica demasiado diluído no meio das sequências de acção digital. (A versão mais longa inclui mais diálogos entre Zhao e Chow).

Esquadra Negra
Uma estratégia de ataque irregular.
Sem surpresas a nível de desenvolvimento narrativo, «Shaolin Soccer» é uma comédia bem sucedida, já que a maioria dos gags são genuinamente engraçados, fazem rir e chegam a extrair algumas gargalhadas. Nós, os que não dominamos o cantonês, poderemos estar a perder algumas subtilezas, já que o humor de Chow também se tem baseado em trocadilhos no dialecto local, que dificilmente passam para a legendagem. No entanto, a generalidade das referências serão bem absorvidas pelas plateias ocidentais (toda a gente conhece Bruce Lee, por exemplo, nem que seja somente a sua figura), mesmo por grande parte do público ocasional de centro comercial. Por outro lado, «Shaolin Soccer» é um filme dominado pela imagem e não pelos diálogos, daí que tenha sido um potencial sucesso de bilheteira planetário. Imagine-se um lançamento a sério no auge do recente mundial de futebol...

Despertar
«Shaolin Soccer» acaba por ser um filme adequado para a maioria dos públicos, quase familiar, mas tem momentos que fogem ao conceito americano de filme familiar, como algumas cenas mais violentas e com um pouco de sangue (M/12, dir-se-ia) que, de um modo geral, a Miramax “adaptou”. A versão americanizada, que será difundida pelo mundo ocidental, dificilmente merecerá algum respeito crítico ou consideração pelo público (principalmente o anglófono, que não gosta de ler legendas, mas que também não vai à bola com dobragens), candidatando-se mais facilmente ao estatuto de directo-para-vídeo em muitos mercados.

4

O DVD de Hong Kong (R0) permite visionar o filme em duas versões: a original lançada em salas e a mais extensa, com duas cenas extra e uma sequência de "bloopers" precedendo os créditos finais. Infelizmente somos obrigados a ver, em qualquer dos casos, um logo branco no ecrã para aceder a essas cenas (premindo a tecla de selecção). A primeira prensagem forçava também um logo vermelho, para acesso a curtos exemplos de como os efeitos visuais foram obtidos (que acaba por ser meramente a apresentação das mesmas imagens com e sem CGI). Inclui-se também um making-of, legendado em inglês.

publicado online em 1/12/02

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