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4. Coreia do Sul

Em termos de qualidade média das suas produções diríamos que a Coreia do Sul continua "em alta" — para ligar ao pobre título usado na nossa última análise ao Festival de Sitges —, mas o leque de títulos apresentados no festival não se revelou particularmente apelativo. Uma das razões para a selecção ser limitada prende-se com a crescente popularidade do cinema local que leva a que, por exemplo, um título como «Old Boy» seja considerado muito forte e capaz de dar nas vistas no maior festival do mundo, catapultando a sua distribuição internacional. Se o filme de Park Chan-wuk estava destinado a ganhar o Grande Prémio do Juri de Cannes, outros títulos já com distribuidor italiano não foram disponibilizados, como era o caso dos mais recentes de Kim Ki-deok ou «A Tale of Two Sisters».

Dance like the Wind
«Dance Like the Wind» abriu o festival.
Legend of the Evil Lake
«Legend of the Evil Lake», um wuxia afogado num drama limitado.
Houve um naipe de bons filmes coreanos presentes no festival: «Dance like the Wind», «...ing», «Singles» e «The Road Taken». Os outros cinco títulos não eram fracos, apenas não tinham interesse particular. «Sweet Sex and Love», de Bong Man-dae, permitiu vislumbrar um pouco do cinema soft-core local — e o desejo por essa experiência cultural trouxe muita gente à sala de projecção, apesar do adiantado da hora. A história não é muito complexa (surpresa!): um homem e uma mulher, ambos habituados a encontros sexuais sem consequência, mantém uma relação que promete ser mais duradoura do que o normal... A maior parte do filme dedica-se a esses encontros sexuais, filmados com descontracção, onde vale quase tudo menos genitália exposta (na verdade, há um breve momento que deve ter passado a censura). Os efeitos sonoros aproximam o registo da pornografia. Podem haver boas intenções artísticas por detrás do filme, mas pouco ficará na memória do espectador para além do sexo.

[vd. encontro com Bong Man-dae]

«Wild Card» é dispensável. Um filme com polícias que perseguem ladrões homicidas, sem que nenhuma das personagens nos desperte qualquer interesse. Para mais, nem sequer inclui uma cena de perseguição sobre um comboio, conforme ilustrado nas imagens promocionais. Não que tal salvasse o filme, mas pensámos que a acção potenciaria algum entretenimento e sentimo-nos de tal modo desiludidos, que somos levados a reclamar com a falta de uma perseguição em cima de um comboio. Se se entende a comparação entre este filme e «Nowhere to Hide», onde a história pouco interessa e que nos traz igualmente polícias a perseguirem obsessivamente um assassino, não há aqui nada de novo em termos formais ou narrativos. Tudo muito plano.

«Cheon Nyeon Ho» [«Legend of the Evil Lake»] é uma obra que nos agradou ver num grande ecrã, pelos valores de produção, pela fotografia e por uma certa estética reminiscente de clássicos de outrora. Teceram-se comparações com «A Chinese Ghost Story» (1987), mas o filme parece-nos mais inspirado em «The Bride with White Hair» (1993). Cruzam-se referências do wuxia pian com a tradicional história do fantasma condenado a ser mau, que luta por se libertar e para encontrar o amor verdadeiro, etc., etc. Trata-se de um remake de um filme coreano de 1969, que desconhecemos, por isso as referências ao cinema de Hong Kong podem não ser totalmente adequadas (ou podem não ser as essenciais). De Hong Kong é definitivamente o estilo da acção, assinado por Yuen Tak, constituindo, sem surpresa alguma, um dos trunfos do filme.

«Legend of the Evil Lake» é narrativamente pobre e o drama romântico nunca descola do chão, mas pelo menos algumas personagens fazem-no, e aparatosamente, o que é sempre entertaining. Com a primeira figura a voar, recortada sobre a lua, deu para perceber que boa parte da audiência estava ansiosa por um bom filme de género. Infelizmente, não se chegou lá. [vd. texto de Hugo F. Gomes]

Once Upon a Time in High School
Amigos? «Once Upon a Time in Highschool».
Baseado nas experiências pessoais do próprio realizador (Yu Ha), «Maljuk Geori Janhoksa» [«Once Upon a Time in Highshool — The Spirit of Jeet Kune Do»] desenrola-se em 1978 e segue as desventuras do introvertido Hyun-soo (Kwon Sang-woo), que recentemente se transferiu de uma outra escola. O seu amigo mais próximo é Woo-sik (Lee Jeong-jin), rebelde e líder da turma. Num cenário de repressão e violência constante, há espaço para um triângulo amoroso quando os dois amigos conhecem Eun-ju (Han Ga-in), uma jovem simpática que desperta a competição entre ambos. Para sobreviver a um sistema educativo darwinista e brutal, impositivo e descontrolado, Hyun-soo procura “alimento” no espírito de Bruce Lee e no estilo único de kung fu por si fundado – o “Jeet Kune Do”, “the art of the intercepting fist”.

«Spirit» oferece-nos uma visão negra sobre o sistema educativo coreano e a incapacidade de afirmação pessoal de uma geração. Violento e gráfico, tem um elemento infantil e inocente que lhe confere uma certa normalidade, como se estivesse formatado para não ultrapassar determinados limites ou fronteiras (ao contrário de uma outra entrada coreana, essa absolutamente transgressora, o hiperviolento e trucidante «Old Boy» de Park Chan-wook). Apesar da sensibilidade temática, Yu Ha raramente cai em clichés, procurando unicamente contar uma boa história, sem tentar filosofar ou comunicar-nos descaradamente para onde pendem as suas preferências ou mesmo submeter-nos a lições de moral bacocas. Aqui, como nunca, o seu pragmatismo pode também ser a sua maior desvantagem. HFG.

Taegeukgi
Jang Dong-gun e Won Bin, em «Taegeukgi», de Kang Je-gyu.
«Taegeukgi Huinallimyeo» [«Taegukgi»] é um filme de guerra, que se desenrola no cenário do conflito que opôs os dois estados da península coreana (1950-53), envolto num forte pendor melodramático, característico de algum cinema local. Apenas um homem por lar deveria ser mobilizado, mas Jin-tae (Jang Dong-gun) é recrutado à força quando tenta impedir que o exército leve Jin-Seok (Won Bin), o irmão mais novo. No cenário de combate, a única preocupação de Jin-tae é Jin-seok; faz tudo para o proteger e confia numa regra militar que poderá levar à sua desmobilização. Ensanduichado entre dois flashbacks, «Taegeukgi» poderá remeter para «Saving Private Ryan», faltando apenas a mão pesada do patriotismo. Não sendo um filme desprezível, demonstra, uma vez mais, que Kang Je-gyu não é muito eficaz a lidar com matéria mais sensível — do coração, digamos. Quanto à guerra em si, faz barulho q.b. e há muita mutilação filmada de forma gráfica, ao ponto de uma signora ao nosso lado passar metade do filme a esconder a cara. É caso para dizer que nem todos apreciam o realismo de igual modo. Os que consideraram «Swiri» uma grande obra de cinema — opinião que não partilhamos — deverão sair satisfeitíssimos da projecção de «Taegeukgi».

O filme de Kang encerrou o festival, seguindo-se a «Turn Left, Turn Right», e foi outro coreano, «Baram-eui Jeonseol» [«Dance like the Wind»], de Park Jung-wu, a abri-lo. Um capítulo em que o cinema sul-coreano consegue surpreender é no modo como torna interessantes os temas mais banais. Aqui temos a história de um homem que se deixa levar pelos encantos... das danças de salão. Não sendo uma modalidade (arte, desporto?) que nos entusiasme, é certo que o filme está rodado com habilidade e humor, por forma a convencer-nos que é possível algo como sentir um chamamento quase religioso, espiritual, que provoque um desejo irresistível pela dança. As danças de salão são uma actividade banal cá pelo burgo, mas que se revestem de uma aura de “devassidão” na sociedade sul-coreana, remetendo para “cabarets” e bares que não são frequentados por pessoas das melhores famílias. No filme, os professores são vistos como gigolos, que se aproveitam da fragilidade de mulheres mais velhas, normalmente casadas, para lhes extorquir vastas somas de dinheiro. Por essa razão, a polícia decide usar uma agente infiltrada no submundo da dança. Há muito humor — a sequência com os vários mestres, que remete para o cinema de kung fu é um bom exemplo —, mas «Dance like the Wind» leva-se a sério e os seus passos de dança conseguiram seduzir-nos.

Sobre «Sa-inyong Siktak» [«The Uninvited»] já falamos no contexto do Festival de Sitges 2003. O filme foi também exibido em Udine, adicionando-se aqui a opinião de Hugo Freire Gomes.

The Uninvited
Jeon Ji-hyun em «The Uninvited».
Primeira obra da realizadora sul-coreana Lee Su-yeon onde Jung-won (Park Shin-yang), é um desenhador de interiores atormentado pelos fantasmas de duas crianças assassinadas no Metro. Após alguns sustos, conhece num consultório médico uma médium espiritual (a encantadora Jeon Ji-hyun), que pode ser a chave para a resolução deste drama psicológico.

«The Uninvited» insere-se numa linha de filmes de horror atmosféricos («Memento Mori», «Tale of Two Sisters») produzidos na Coreia do Sul capazes de explorar com subtileza e densidade temáticas que dificilmente são reproduzidas em obras do género provenientes de outras paragens. Como revés, os detractores implicam habitualmente com a “atmosfera” das películas como sinónimo de sensaboria e lentidão no tratamento narrativo da matéria.

O tratamento visual e dramático que Lee Su-yeon confere ao seu filme é revelador de uma ambição e arrojos incomuns para uma primeira obra, não sendo alheio o próprio tempo de duração da película (ultrapassa os 120 minutos). Com momentos verdadeiramente assustadores, dá-nos prazer assistir ao desfiar de uma história adulta e madura sem fáceis resoluções, concessões simplistas ou cortes abruptos.

Singles
«Singles».
Em «Singles», Na-nan (Chang Jin-young) é uma jovem sensível e tímida, inquieta e desassossegada pela síndrome dos "30". Ao contrário de Portugal, onde muitos jovens (mulheres e homens) já entradotes na casa dos 30 persistem em viver como cangurus no regaço das mães, na Coreia (e em especial no Japão) essa é uma altura da vida para grandes decisões e mudanças. É por isso natural e compreensível que, por exemplo, no Japão, muitas mulheres jovens aproveitem para realizar as grandes viagens e empreendimentos pessoais antes de casarem, pois é um ponto de viragem. Após o casamento, deixam o trabalho para se dedicarem à construção de um lar feliz e harmonioso.

Compreende-se por isso a preocupação da moça, para mais após conhecermos que Na Nan foi abandonada pelo namorado. A melhor amiga de Na-nan, Dong-mi (a capitosa Uhm Jeong-hwa), é uma variação de Carrie (a cronista cosmopolita e liberal da série "Sexo e a Cidade"), progressista e hedonista e que vive com um companheiro de quarto (Lee Beom-soo), que é precisamente o oposto de si: certinho, tímido e parcimonioso. Entre eles, surge um romance improvável, que culmina numa noite apaixonada, à qual ambos procuram desmentir ter existido logo no dia seguinte, depois da "ressaca". Estes acontecimentos, a que se juntam uma despromoção profissional e um novo interesse amoroso, operam uma mudança na forma como Na-nan vê os seus relacionamentos amorosos e escolhas profissionais.

«Singles» é uma comédia romântica urbana e sofisticada, divertida e estonteante, com desempenhos inteligentes e sensíveis do seu trio de protagonistas. Não pretende ser um docudrama sobre a improbabilidade das relações amorosas pós-modernas, cativando-nos simplesmente pela sua simpatia, simplicidade e...léxico (há, pelo menos, daqui para a frente uma palavra de coreano para declamar em voz alta à nossa colega do lado). HFG.

The Road Taken
A reunificação está do outro lado: «The Road Taken».

Com um ponto de vista inesperado, para um filme sul-coreano, «Seontaek» [«The Road Taken»] baseia-se na história real de Kim Sun-myung, simpatizante comunista, detido em 1951, durante a Guerra da Coreia, e acusado de espionagem. Kim passou 44 anos preso, sendo solto apenas em meados dos anos 90, no contexto do clima reconciliatório entre os dois estados da península coreana. Este facto levou a que fosse referenciado pela Amnistia Internacional como o prisioneiro político detido há mais tempo em qualquer parte do mundo.

Aos prisioneiros políticos exigia-se que renegassem os ideais comunistas, assinando uma declaração de arrependimento. Bastava esse acto para serem colocados em liberdade, mas Kim e outros recusaram-se praticamente até ao final das suas vidas. Sem necessidade de tecer qualquer comentário político directo, Hong Ki-seon, realizador de um filme com um título poético, «Sorrow, Like a Withdrawn Dagger, Left my Heart» (1992), limita-se a mostrar o absurdo de uma situação e a suspirar pela lamentável separação entre um povo irmão. Na posse do conhecimento histórico, o espectador reage com algum pesar a uma ironia amarga: durante os anos 70, os prisioneiros rejubilam quando circulam notícias de uma reunificação a curto prazo, na sequência do início das conversações entre os dois estados da península. As imagens documentais apresentadas no final, depois de tão longo cativeiro em nome de ideais que não se renegaram, não podem deixar de nos comover — independentemente da nossa posição quanto a esses ideais.

. . . ing
«. . . ing». Gerúndio.
«...ing» (a romanização do coreano é letra a letra: "ai-aen-ji"), finaliza o lote dos filmes coreanos apresentados na sexta edição do FEFF. Havia potencial para um melodrama carregado, puxando muito à lágrima, mas Lee Eon-hee, conforme desenvolveu no encontro realizado dois dias antes da projecção do filme [vd. texto], concentrou-se no desenvolvimento de uma relação entre duas personagens femininas, mãe e filha. A filha é interpretada por Im Su-jeong, de «A Tale of Two Sisters» (prémio de interpretação no Fantasporto 2004) e o papel da mãe coube à actriz Lee Mi-suk, que recentemente integrou o elenco de «Untold Scandal», revisitação das Ligações Perigosas. Os elementos melodramáticos surgem na forma de uma doença que parece condenar a adolescente, um ingrediente que não é usado como qualquer espécie de “surpresa” dramática. Está lá desde o início. Um terceiro vértice é introduzido com um interesse romântico, mas não é essa a vertente que melhor funciona narrativamente. Um filme singelo e sedutor, sem pretensões, ao qual gostaríamos de voltar em breve.

[vd. encontro com Lee Eon-hee]



Continua

5ª Parte: Tailândia

7/06/04

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Capítulos
Encontros
1. China
2. Hong Kong
3. Japão
4. Coreia do Sul
5. Tailândia
6. Filipinas
1. Japão - Ichikawa Jun e Kaneko Fuminori
2. Coreia do Sul - Bong Man-dae e Lee Eon-hee
3. China - Zhou Xun e Li Shaohong
4. Final - Johnnie To, Wai Ka-fai, Pang Ho-cheung,
Motohiro Katsuyuki e Kang Je-gyu
cinedie asia © copyright Luis Canau.