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5. Coreia do Sul em Alta

A selecção de filmes sul-coreanos não foi, naturalmente, tão extensa quando a de filmes japoneses — mas a possibilidade de uma retrospectiva para breve foi sugerida pelo director do festival [vd. Dia da Coreia]. Vimos três títulos surpreendentes e tendencialmente difíceis de catalogar (como, aliás, tendem a ser os melhores filmes originários deste território): «Janghwa, Hongryeon» [«A Tale of Two Sisters»], «Salinui Chueok» [«Memories of Murder»] e «Jigureul Jikyeora!» [«Save the Green Planet!»]. O primeiro, a concurso na Secção Fantàstic, foi, a meu ver, imerecidamente ignorado pelo júri. Alguma menção especial deveria ser desencantada (esgotou-se em «Gozu»?), para recompensar o trabalho de Kim Ji-wun. Formalmente um filme de horror, «Janghwa, Hongryeon» desenvolve-se num forte drama e emotivo thriller psicológico, onde David Lynch provavelmente não desdenharia colocar a sua assinatura, devido a um certo surrealismo, à cronologia entrecortada e ao facto de poderem existir diversos pontos de vista ou realidades.

Kim Ji-wun A Tale of Two Sisters
Kim Ji-wun apresentou o excelente thriller de horror / drama familiar «Janghwa, Hongryeon» - uma história de duas irmãs.

Os outros dois filmes inseriram-se na Secção Orient Express: «Save the Green Planet!» mais facilmente poderá ser promovido como uma comédia, mas tal rótulo seria uma grande simplificação. Conta-se a história de um indivíduo com um passado de perturbações do foro psicológico que rapta um industrial, convencido que irá assim impedir uma invasão de forças alienígenas de Andrómeda. Cómico, sim, mas também triste e melancólico, apresentando personagens sólidas, muito bem definidas e um desempenho marcante de Shin Ha-kyun («JSA», «Sympathy for Mr. Vengeance»). Definitivamente não recomendado para quem prefere comédias ligeiras.

Save the Green Planet
«Save the Green Planet»: comédia, romance, drama, thriller, teorias da conspiração, ficção científica, números de circo, etc. e tal. E como resulta.
«Memories of Murder» baseia-se no caso real de um psicopata que assassinou várias mulheres, nos anos 80, nas imediações de uma povoação do interior sul-coreano. Bong Joon-ho («Barking Dogs Never Bite») concebeu um grande filme, sustido na relação déjà vu entre um polícia jovem e cumpridor, que vem da cidade juntar-se a um veterano, com métodos de trabalho que privilegiam os resultados imediatos, ignorando qualquer espécie de direitos de eventuais suspeitos, e numa caracterização tida por fiel e cuidada da época em que a acção decorre (durante o período da ditadura militar). O filme entusiasma, mesmo sabendo-se que um “final feliz” implicaria ignorar completamente os factos históricos: o assassino nunca foi encontrado. Sem uma direcção de rédea solta que caracteriza a sua obra anterior, Bong assinou um filme mais maduro, no sentido de ter um tom menos irónico, mais sério, contido e assente no bom trabalho dos actores, liderados pelo excelente actor Song Kang-ho.

Lee Soo-yeon
Lee Soo-yeon (Prémio Citizen Kane), realizadora de «The Uninvited».
«4 Inyong Shiktak» [The Uninvited] volta a trocar-nos as voltas das tipificações, desistindo de ser um filme de horror, depois de uma primeira parte em que o protagonista é perseguido por visões com fantasmas de duas crianças. O sobrenatural acaba por se revelar apenas um meio para explorar os problemas emocionais do passado dos protagonistas. A história flúi a partir do encontro de um jovem arquitecto com uma rapariga narcoléptica, em terapia psiquiátrica depois de ter testemunhado um crime chocante. O papel principal feminino foi entregue a Jeon Jy-heon, que tem oportunidade de compor uma personagem radicalmente diferente da “sassy girl” que a catapultou para o estrelato e para o reconhecimento internacional. «The Uninvited», que convenceu o júri da secção oficial a entregar à realizadora Lee Soo-yeon o prémio revelação (Citizen Kane), consegue intrigar até ao final, ainda que a mudança de rumo possa contribuir para mitigar o nosso interesse. O filme inclui um par de cenas surpreendentes que fizeram abrir muitas bocas de espanto. O factor “choque” funciona não pela violência gráfica em si (os momentos a que me refiro são, de facto, violentos), mas pelo intuito de Lee em procurar um realismo inesperado, confundindo as nossas expectativas de cinéfilos habituados a determinados mecanismos da linguagem cinematográfica, como um esperado corte para uma “cena de efeitos especiais” (que, afinal, não surge).

Kim Sung-ho
Kim Sung-ho apresentou «Into the Mirror» no El Retiro.
Retiro
Into the Mirror
The Housemaid
«The Housemaid», um clássico coreano de 1960.
«Geoul Sokeuro» [«Into the Mirror»] é um curioso thriller de horror, que explora para bom efeito os motivos visuais onde se sustenta, i.e., espelhos e a sugestão de um mundo para lá deles, que vai fazendo uma visitas ao nosso lado. A sequência dos créditos, com a primeira morte, é esteticamente apelativa, mas ficou a sensação de que, posteriormente, faltariam outros momentos de impacto e estética similares. Ocorreu-me «Cube», de Vicenzo Natali, que continha uma cena inicial tão marcante, que faria com que o resto do filme se parecesse limitar a um grupo de pessoas a cavaquear durante uma hora e tal. Esse efeito de decepção, na sequência de uma introdução muito bem elaborada, não está tão patente em «Into the Mirror», que deixa, inclusive, a vontade de o vir a rever, quando surgir uma oportunidade. Sinopse muito breve: um ex-polícia — interpretado por Yoo Ji-tae, de «Ditto» e do mais recente (e muito esperado) «Oldboy» — é agora segurança num centro comercial onde se começam a registar estranhas mortes, com as vítimas a serem sempre encontradas junto a espelhos. Bom, não há que fazer grande mistério quando a isso, uma vez que vemos, desde o início, que a autoria do crime é do próprio reflexo. O desenvolvimento do conceito dá azo a pormenores bem inseridos no texto, como a situação que levou o herói a deixar a polícia (é difícil de adivinhar?) e a história contada, mais tarde, na morgue.

Dispensámos «Acacia», outro dos coreanos em competição, mas demos o tempo por bem empregue com o clássico «Hayno» [The Housemaid], produzido em 1960 e inserido na secção Mondo Macabro. A cópia foi montada com base em pelo menos duas fontes diferentes, pelo que alguns segmentos não estavam em muito boas condições e o tipo de letra da legendagem mudou algumas vezes de excelente para horrendo, mas é possível julgar a sua óptima fotografia a preto e branco, e uma subtil direcção, com um fluir lento das câmaras em direcção à acção, que funciona surpreendentemente bem. Irónico, na medida em que acaba por parecer um aviso aos homens casados para resistirem a tentações extra-matrimoniais, ao mesmo tempo que deixa a dúvida se tudo não passará de uma simples brincadeira, depois de um comentário final, quase do género de “mensagem de utilidade pública”. O miúdo é interpretado pelo veterano Anh Sung-ki («Nowhere to Hide», «Embriagado de Mulheres e Pintura/Chwihwaseon»), algo de que naturalmente não me teria apercebido se Darcy Paquet não o tivesse apontado.




E assim se concluiu mais uma edição de um excelente festival de cinema. O maior problema, ao olharmos para o programa, é a imediata constatação de que é impossível assistir a tudo o que queremos. O Brigadoon, sedeado este ano no edifício Miramar (com duas salas de projecção), é um verdadeiro festival paralelo de série B, que eu gostaria de ter frequentado se não ocorresse ao mesmo tempo do “outro” festival. A programação oficial obriga a uma decisão prévia: ou se opta por debicar um pouco de cada coisa, ficando a conhecer uma grande variedade de filmes, ou se define uma "linha editorial", visionando igualmente um número razoável de obras, mas possibilitando uma visão abrangente de determinadas cinematografias. No âmbito deste site, é natural a preferência pelas cinematografias asiáticas, o que não quer dizer que, pessoalmente, não tenha posto de parte alguns títulos provenientes desse continente (como «Acacia» ou «Aragami»), ao mesmo tempo que procurei não perder títulos europeus ou americanos que pareciam mais sugestivos (como «Haute Tension», «Dependencia Sexual» ou «Singing Detective»). De fora, ficaram alguns filmes para ver mais tarde, como «Ascension», de Karim Hussain, que esteve no Fantasporto, em 2001, a apresentar «Subconscious Cruelty». O seu novo filme passará também no festival português em Fevereiro.

Directo à Jugular, análise de Hugo F. Gomes

11/01/04

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Capítulos
Especiais
1. Horror Tradicional
2. Horror Série Z: Mondo Macabro
3. Uma Chamada do Japão
4. Hong Kong Ainda Existe
5. Coreia do Sul em Alta
6. Directo à Jugular, análise de Hugo Freire Gomes
Dia da Coreia - Conferência de imprensa
Conferência de imprensa com Miike Takashi («Gozu»)
Conferência de imprensa com Asano Tadanobu («Zatoichi»)
Fórum: "O Cinema Japonês Contemporâneo", com Miike Takashi e Lida Joji
Fórum: "Coreia, Cinema Explosivo"
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