Oldboy - Velho Amigo/Oldboy [en]
Old Boy
올드보이 (oldeu boi)
Realizado por Park Chan-uk [Park Chan-wook]
Coreia do Sul, 2003 Cor – 120 min. Anamórfico.
Com: Choi Min-sik, Yu Ji-tae, Kang Hye-jeong, Ji Dae-han, Oh Dal-su, Kim Byeong-ok, Kim Su-hyeon, Lee Seung-jin, Yun Su-kyeong, Park Myeong-sin
drama crime thriller mistério
Posters
Oh Dae-su (Choi) é raptado e encerrado numa prisão particular, sem que lhe seja dada justificação alguma. Passa 15 anos enclausurado, sozinho, num quarto com casa de banho e um televisor que lhe permite ter contacto com as mudanças no mundo exterior. O quarto é impregnado regularmente por um gás soporífero, precedendo a intervenção dos captores, que assim limpam o local ou cortam-lhe o cabelo, sem que o prisioneiro troque quaisquer palavras com outros humanos. Depois da libertação, Dae-su concentra-se exclusivamente na vingança; em descobrir quem o prendeu e quais as suas razões. Mas a tarefa não é fácil; tem de se adaptar a uma realidade década e meia à sua frente e é suspeito de um homicídio cometido durante o cativeiro. Mi-do (Kang), uma cozinheira de sushi de mãos frias vai ajudá-lo a procurar uma resposta para a pergunta que não lhe sai da mente: porquê? Baseado numa manga em 8 volumes de 1997, com argumento de Tsuchiya Garon e desenhos de Minegishi Nobuaki.

«Oldboy» é um filme com um certo número de surpresas narrativas, sendo recomendável evitar a leitura de textos pormenorizados antes do primeiro visionamento. Como é natural e habitual, procura-se, neste texto, evitar a descrição de especificidades do guião que devam ser descobertas no momento adequado pelo espectador.

O último filme de Park Chan-uk, e o segundo de uma Trilogia da Vingança iniciada com o magistral «Bokseuneun Naeui Geot» [«Sympathy for Mr. Vengeance»] (2002), chegou a Cannes sem que se registassem grandes expectativas nos relatórios de imprensa que antecipavam o festival. Nem os Cahiers do Cinema pareciam ter ouvido falar do realizador ou dos seus títulos anteriores, como o referido anteriormente ou «Joint Security Area», já projectado em Portugal, na Cinemateca Portuguesa. É natural que se esperasse mais de nomes mais conhecidos nos meandros da "arte e ensaio", como Wong Kar-wai ou Pedro Almodóvar, mas listar especificamente as "promessas asiáticas" que faziam parte da competição, referindo quase todos os títulos presentes menos «Oldboy», é sintomático da fraca expressividade do cinema sul-coreano no Ocidente ou a sua importância mitigada — até agora, diríamos — no contexto temático de um dos festivais de cinema "mais importantes da Europa", como diria, com muita contenção e receio de exagerar, um pivot de uma estação televisiva nacional.

Oldboy
Oh Dae-su é fechado, durante 15 anos, numa cela privada.
O momento sushi.
Quentin Tarantino, presidente do júri do Festival de Cannes, já fazia uma ideia do que poderia esperar, por conhecer a obra de Park e por estar mais atento aos zunzums provenientes da Ásia do que a imprensa que costuma cobrir aquele evento. Por outro lado, talvez devesse estar calado em vez de fazer comentários e amplificar o "hype" sobre filmes que ainda não haviam sido projectados.

Este não é um tipo de filme que gere consensos, devido à crueza e ao desejo por parte do realizador de não aligeirar as violentas consequências das acções nascidas de um desejo cego de vingança. Algumas pessoas ficaram impressionadas (ou até chocadas) com a violência representada e a multiplicação de comentários ilustrando esse sentimento pode contribuir para preparar os espectadores para desmembramentos constantes e sangue a salpicar nas paredes de cinco em cinco minutos. Mas «Oldboy» é menos violento do que o filme anterior de Park Chan-uk, onde existem cenas prolongadas de tortura, mutilações gráficas e sangue a jorrar a boa distância. Aqui, bom, a tortura é mais breve, a mutilação menos gráfica e o sangue não esguicha a mais de meio metro.

Alguma violência em «Oldboy» é mais sugerida que representada. Se atentarmos num exemplo em que Roger Ebert pega, uma cena que envolve a extracção não voluntária de parte da dentição em bom estado de uma personagem, vemos apenas o início do acto e a sua consequência (poder-se-ia comparar com a célebre cena da orelha em «Reservoir Dogs» que muitas pessoas jurariam ser detalhadamente gráfica, apesar de, na realidade, a câmara se afastar). O facto de muitos se afirmarem incomodados com o "excesso" de violência em «Oldboy» servirá sobretudo para aferir do impacto emocional do filme, ainda que o registo de Park seja, formalmente, frio e distanciado. Ebert, uma referência da crítica norte-americana, também é conhecido pelos seus momentos de particular sensibilidade. O exemplo máximo é o episódio em que trucidou «Veludo Azul», de David Lynch, devido ao "abuso" contra Isabella Rosselini, "obrigada" a rodar nua uma cena emotiva.

Choi Min-sik
Choi Min-sik (Dae-su).
Kang Hye-jeong
Kang Hye-jeong (Mi-do).
Há outro momento-choque frequentemente referido e o qual o realizador comentou durante a sua passagem por Cannes (1). Não parece que se trate de uma "surpresa" do filme e, se o fosse, deixaria de o ser, uma vez que parecia fadada a tornar-se “a” questão incontornável a colocar ao realizador ou ao actor Choi Min-sik. Em todo o caso, o leitor (sobretudo se for vegetariano) pode preferir saltar o resto do parágrafo. A cena em causa é quando Dae-su come um polvo. Inteiro. Vivo. A espernear (tentacular?). Bom, na Coreia do Sul é normal comerem-se polvos a espernear, a novidade é que Dae-su dispensa a parte em que o bicho é seccionado para ser ingerido pedaço a pedaço. Este interlúdio gastronómico não é bem visto por alguns que comentam que na Coreia do Sul não há muita preocupação com o bem-estar dos animais. É certo que o bem estar do falecido polvo não foi assegurado e isso quem vir o filme poderá conferir. Mas o que está em causa é, quanto muito, uma questão cultural e não exactamente de respeito por "direitos dos animais" (num contexto de uma sociedade onde é normal matar animais para fins de alimentação). A questão só seria diferente se o cefalópode tivesse sido morto gratuitamente; aqui é óbvio que foi usado para alimentação. O choque ou o desagrado não terá, naturalmente, o mesmo efeito num país ibérico onde se sangram animais com a principal finalidade de recreação, do que, por exemplo, nos EUA onde se dilui a relação entre os seres vivos e a respectiva apresentação à mesa.

Estamos perante uma obra de género, um thriller negro, mas também um ensaio sobre a vingança, seus limites e consequências. Seria pouco interessante desenvolver um filme de duas horas apenas para dizer que a vingança não leva a lado nenhum, que violência gera violência, etc. Park Chan-uk usa a temática como enquadramento narrativo, criando um filme para o grande público (na Ásia, pelo menos), com um argumento bem escrito, que se desenvolve e revela nas doses certas. O elenco é virtualmente o ideal. Choi Min-sik e Kang Hye-jeong estão muito bem, tal como a generalidade dos secundários. Yu Ji-tae, por outro lado, já não me pareceu tão insubstituível.

Choi Min-sik, que já foi visto num filme estreado em Portugal, «Embriagado de Mulheres e Pintura/Chwihwaseon» (2002), encarna na perfeição uma personagem que não tem nada a perder e que consegue transmitir uma impressionante força e destreza física, fazendo-nos aceitar os excessos de alguns confrontos. Choi é um actor com uma amplitude notável, como se poderá constatar, por exemplo, confrontando o Dae-su de «Oldboy», com o gangster falhado de «Failan» (2001). Kang Hye-jeong apareceu anteriormente na produção de baixo orçamento, rodada em DV, «Nabi» [«Butterfly»], uma pequena curiosidade de ficção científica melancólica e filosófica, projectada no Fantasporto de 2002 [vd. texto], e tem aqui um trampolim para uma carreira prometedora.

Choi Min-sik
Dae-su não sai de casa sem o martelo de estimação.
Se o texto é complexo e rigoroso, a composição visual fornece-nos um nível aparte para a apreciação da obra. A fotografia é cuidada, os enquadramentos cuidadosamente preenchidos e equilibrados, os movimentos da câmara são naturais e espontâneos. Veja-se o plano contínuo no corredor, que opõe Dae-su a um vasto número de homens armados com paus e facas. Todas as opções formais se ajustam bem para o contar da história. Para além desse plano-sequência, que ilustra a capacidade de resistência até limites insustentáveis, alimentada pela raiva e pelo desejo de vingança, a montagem adapta-se conforme o tom da cena e o estado de espírito de Dae-su: no início do filme, a embriaguez é reflectida pela utilização de uma infinidade de jump cuts.

Não há moral nos filmes de Park — os julgamentos ficam a cargo do espectador. «JSA», outro filme onde se parte numa investigação ao passado e onde o flashback tem uma relevância narrativa superior, já reflectia esta imparcialidade do cineasta. É com «Sympathy for Mr. Vengeance» que «Oldboy» tem maiores semelhanças formais e narrativas. Park constrói um mundo negro, imerso nas trevas, que se vai revelando, à medida que os “heróis” vão ser obrigados a enfrentar esse meio. Em ambos os filmes existem criminosos organizados que fornecem serviços socialmente repulsivos a quem estiver disposto a pagar por eles: órgãos humanos no primeiro filme, encarceração privada no segundo. A moral não precisa de ser pregada: os resultados dos actos falam por si e em momento algum se glorifica a violência que pontua o caminho das personagens — Choi em «Oldboy», Song Kang-ho em «Sympathy...».

Kang Hye-jeong
O sexo tem também um papel similar nas duas partes da trilogia da vingança de Park Chan-uk. Não há preliminares ao som de música ligeira; corta-se directo para um acto, cuja representação oscila entre a ternura e a crueza, sem lugar para palavras doces. É um acto de consumação ensombrado por uma contagem decrescente invisível, ilustrando um desespero de fim-dos-tempos, como se as personagens pressentissem que o futuro é muito negro e que o tempo lhes foge entre os dedos. A última oportunidade para amar, dir-se-ia... Ainda que não seja o registo do “romântico” que fica na nossa memória depois de vermos um ou outro filme, «Oldboy» é, afinal, também uma história de amor.

5

(1) Numa entrevista feita durante Cannes, Park Chan-uk disse "lamentar" que os polvos tivessem de morrer. Mas o texto parece sugerir alguma ironia. Mais abaixo, Park diz que espera que o realizador escolhido para o remake americano do seu filme não tenha muito talento, para que ele não fique mal visto.

Fantasporto 2005. Estreia nacional a 10 de Março de 2005 (New Age Entertainment). A primeira edição em DVD (Starmax) saiu em Maio de 2004 na Coreia, trazendo dois DVDs em digipaks separados, um para o filme outro para os suplementos, arrumados numa “slip case” de cartão. A imagem é convenientemente anamórfica e as pistas de som são DTS 5.1 e Dolby 2.0. No final de 2004 sairam duas outras edições: "Ultimate" e "Final Edition". A primeira vinha numa caixa especial e custava cerca da US$100. A última, i.e., a Final, destina-se aos que perderam as edições limitadas ou não quiseram dar uma fortuna por um filme e uma caixa de metal. Ao que tudo indica, apenas a primeira edição respeita o esquema de cores aprovado pelo realizador. Reclamações terão sugerido ao distribuidor "corrigir" as cores, tornando-as mais vivas. Custa a acreditar que um coleccionador quisesse dar 100 dólares por uma edição que não respeitasse a visão do realizador, mas coisas mais estranhas acontecem. Todas as edições têm extras diferentes. Apenas a primeira tem DTS. Por seu lado essa edição não tem Dolby Digital 5.1, como as que se seguiram. (26/1/05)

publicado online em 23/06/04

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