Peullandaseu-ui Gae [Barking Dogs Never Bite]
플란다스의 개
Título no DVD: A Higher Animal
Realizado por Bong Jun-ho
Coreia do Sul, 2000 Cor – 110 min.
Com: Lee Sung-Jae, Bae Du-na, Kim Ho-Jung, Byun Hui-Bong, Goh Soo-hui, Kim Roe-ha, Kim Jin-gu, Im Sang-soo
drama comédia
Poster
Quem é que nunca se irritou com o cachorro de um vizinho que ladra irracionalmente, todo o dia e toda a noite, sem parar? Yoon-ju (Lee) atravessa dificuldades financeiras – é a mulher, grávida, quem sustenta o lar – e vê-se confrontado com a necessidade de conseguir uma avultada quantia em dinheiro, que lhe abrirá as portas para um posto de professor na universidade. Como se não bastasse a tensão diária e as incertezas económicas, ainda há aquele maldito cão que não se cala. Um dia, dá de caras com o inimigo declarado e decide aproveitar a oportunidade para se livrar dele. Mas cães não faltam, apesar da sua posse ser proibida pelo condomínio, algo que talvez faça Yoon-ju pensar que algum direito lhe assiste a fazer “justiça”. Hyun-nam (Bae) é uma jovem algo ingénua e inconsciente, com sonhos patetas de se tornar uma "heroína" e aparecer na televisão, admirando a funcionária de um banco que fez frente a um assaltante, perante as câmaras de segurança ("não é toda a gente que aparece na TV"). Enquanto nada de emocionante acontece, lá vai passando os dias no seu aborrecido emprego, nos escritórios da administração do edifício. O trabalho de Hyun-nam inclui carimbar papéis com textos como "Perdeu-se cachorro – dá-se recompensa". Algures, nas caves tenebrosas e sujas do vasto edifício, outros peões envolvidos na trama revelam a sua face.

Where's My Dooog?
Bae e Lee, unidos pelo mesmo objectivo, mas com motivações diferentes (da frase promocional no poster, acima - 同床異夢)
«Barking Dogs Never Bite» oscila entra a comédia negra e o comentário social cínico, recorrendo a uma galeria de personagens atípicas, muito longe do que estamos habituados a encontrar no cinema dito comercial – classificação vaga e genérica a que esta obra foge a intervalos regulares. O herói não é alguém cujo comportamento aprovemos – em particular quem tiver um animalzinho de estimação –, apesar de, em algumas ocasiões, sermos levados a sentir alguma empatia por ele. A solução para os seus problemas passa por angariar dinheiro para um suborno, algo a que nunca é dado qualquer relevo ou censura moral pelo ponto de vista da câmara. É assim e pronto. A relação do casal está constantemente à flor da pele, conduzindo a regulares discussões e insultos, devido a falta de razoabilidade ou compreensão de um ou de ambas as partes. Hyun-nam não é propriamente perspicaz, inteligente ou sequer competente; é antes preguiçosa e falha regularmente com o cumprimento das suas responsabilidades. Passa grande parte do tempo com a sua amiga, a comer noodles, deitadas por entre brinquedos de má qualidade, ou a embriagarem-se, tentando preencher tarde aborrecida, atrás de tarde aborrecida. Mas, coitada, é jovem, e ainda terá tempo de aprender com os seus erros. Os secundários também são, no mínimo, curiosos: a velhota que tem um cãozinho e usa o telhado para secar vegetais, o funcionário de limpeza sempre pronto para mais um petisco e um outro sujeito, um vagabundo, que não se sabe bem quem é, mas que anda por ali com intenções duvidosas.

Não Sabia Que Gostavas de Cães
"Que queriiiido!".
Na Coreia do Sul, os cães podem ainda ser iguarias gastronómicas para alguns (ainda que oficialmente tal seja proibido), mas, ao mesmo tempo, também são escolhidos por muitas pessoas como (dispendiosos) animais de companhia. Aqui, os animaizinhos não são propriamente bem tratados e algumas cenas poderão ser passíveis de melindrar os espíritos mais sensíveis. Há momentos mais realistas do que outros, sendo provavelmente essa a razão para que a primeira coisa a surgir no ecrã seja a declaração de que NENHUM ANIMAL FOI MALTRATADO DURANTE A PRODUÇÃO DESTE FILME (sobre um fundo de ganidos...) Ainda assim, dada a força de algumas imagens – ou talvez mais das situações encenadas – há quem faça uma ressalva à recomendação a pessoas mais sensíveis a tal temática. De qualquer forma, uma das cenas com mais, digamos, impacto, denota a utilização de CGI (espero bem que sim!) e os cineastas tiveram a bom senso (técnico) de apresentá-la a uma certa distância. Por outro lado, seria curioso (e/ou sádico) visualizar a cena a ser engendrada de modo realista, com o realizador a insistir em repetir take atrás de take.

Momento de Verdade
Para lá de uma história original, sem grande respeito por uma estrutura evolutiva clássica, «Barking Dogs...» engloba uma série de pequenos momentos visuais e de humor, que facilmente ficarão registados na nossa memória (sem querer referir a "participação" dos canídeos, coitados). Aqui se podem inserir as perseguições, entre o emocionante e o patético, o modo como Hyun-nam quer parecer um super-herói, quando chega a altura de entrar em acção, as suas visões com o público que a aplaude ou a aposta infantil de Yoon-ju com a mulher sobre qual a distância do local onde se encontram até a loja, à qual este se recusa regressar para comprar um artigo esquecido. Em duas ou três ocasiões inserem-se deliciosos (um trocadilho lamentável) gags visuais, muito simples, mas que se tornam hilariantes por surgirem no meio de um segmento calmo, sereno e cheio de aparente seriedade. Isto poderá não chegar a constituir enxertos de “slapstick” num filme de arte e ensaio, mas o realizador não evita, de modo algum, jogar com as expectativas do público. Bong parece também revelar algum prazer em ridicularizar as suas personagens, de modo cínico, em particular nos momentos em que elas estão na mó de baixo, e consegue partilhar esse gozo connosco, tornando-nos cúmplices das suas partidas cruéis.

O plano estético de «Peullandaseu-ui Gae» é também muito forte. (O título original traduz-se para "Cão de Flandres"; uma referência à série de animação japonesa "Flanders no Inu".) Apesar de existir um estilo vincado, algo característico de muitas primeiras obras, onde se deseja provar aquilo de que se é capaz, existe, paralelamente, uma certa contenção. Ou seja, há variações no modo de filmar e de montar o filme, de acordo com os momentos, com o tom de cada cena, etc. Não há tratamento visual que não se encaixe com a acção que decorre no ecrã. Há planos convencionais, planos com câmara à mão, slow-motion e efeitos de iluminação que recriam flashbacks de modo quase surreal (memórias nebulosas); toda uma panóplia de técnicas da linguagem cinematográfica magistralmente utilizadas por Bong Jun-ho.

Tendo em conta os ingredientes usados creio que o filme pode ser apreciado tanto por quem gosta de cães, como por quem gosta de cães, como ainda por quem não gosta de cães. Logo, um filme virtualmente para todos os públicos. Dito isto, deve-se frisar que os cachorros são meros McWooffins, veículos para uma narrativa cujo piloto continuam a ser os dramas humanos.

Metro
Vencedor do prémio para Melhor montagem, Slamdance Film Festival 2000, Melhor Nova Actriz, Bae Doo-na, nos 21os Prémios Chongryong, Coreia do Sul, Co-Vencedor do Prémio Internacional da Federação de Críticos para o Jovem Cinema Asiático, no 25o Festival Internacional de Cinema de Hong Kong.

5

Disponível num DVD coreano (Spectrum) de boa qualidade, anamórfico, Dolby 5.1. Alguns extras, como comentário áudio e entrevista com Bae Do-na, não legendados. Sobram o trailer, o vídeo musical e storyboards, que não requerem capacidade de entender o coreano. Este disco está, de facto, codificado para Região 3 (muitas edições dizem-no na capa, mas acabam por se revelar R0).

publicado online em 1/12/02

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