Gokudo Kyofu Daigekijo: Gozu [Gozu]
Gozu
極道恐怖大劇場 牛頭
Realizado por Miike Takashi
Japão, 2003 Cor – 139 min.
Com: Sone Hideki, Aikawa Sho, Yoshino Kimika, Hino Shohei, Tomita Keiko, Sone Harume, Tanba Tetsuro, Hazama Kanpei, Ozawa Hitoshi, Kato Masaya
horror crime comédia romance yakuza
Capa DVD
Ozaki (Aikawa), um yakuza sénior, começa a dar mostras de loucura. No decorrer de uma reunião com o líder da organização, aponta para um pequeno cachorro, dizendo que se trata de um “cão de ataque yakuza”(1). Em seguida levanta-se determinado a por termo à ameaça eminente. Minami (Sone Hideki) é encarregue de levar o "Big Brother" numa viagem a Nagoya, da qual é suposto regressar sozinho. Mas antes de chegarem ao destino, Ozaki desaparece e Minami tem de encontrá-lo, vivo ou morto. Durante essa investigação, cruza-se com indivíduos estranhos e presencia acontecimentos que desafiam explicações racionais.

Na génese de «Gozu» esteve a vontade do actor Sone Harume — que interpreta aqui um dos donos da estalagem — em criar um veículo para dar algum fôlego à carreira do filho, Hideki. A ideia original seria um filme de yakuza convencional, mas os Sone, que já haviam trabalhado com Miike, deveriam saber que o realizador tem mais do que uma pequena tendência para subverter as convenções de género — por alguma razão os produtores do remake de «Zatoichi» pensaram ser uma péssima ideia permitir-lhe dirigir o filme e que Kitano se limitasse a interpretar a personagem.

Sone Hideki
Hino Shohei
Minami encontra Nose, um indivíduo com um invulgar problema de pele, que o poderá ajudar a encontrar Ozeki.
Miike e o argumentista Sato Sakichi («Ichi the Killer») usam o yakuza eiga como ponto de partida para mais uma obra liberta de limitações estruturais, sem preocupações com a necessidade de fornecer explicações racionais para os acontecimentos estranhos que circundam a personagem central. Minami é um puro ingénuo — virgem inclusive, mas tal deverá mudar em breve, depois da operação —, um estranho numa terra estranha. Não só um homem de Tokyo em Nakoya, mas, aparentemente, a única pessoa normal num bairro povoado por lunáticos. Neste aspecto estamos perante uma personagem típica de um certo registo de comédia, mas Miike e Sato vão mais longe, mergulhando o filme no mais puro surrealismo, em termos que têm justificado comparações com o cinema de David Lynch. Essas semelhanças vão para lá do cenário da estalagem como ponto de transição ou portal para outra dimensão (ou outro estado de consciência), mas a extravagância de Miike tende a anular os juízos interpretativos que apresentam uma chave para as narrativas de Lynch, estabelecendo correlações entre o real e o fruto da psicogénese. Ou, por outras palavras, durante um filme de Lynch queremos perceber, descodificando, mas num filme de Miike estamos de tal modo desorientados pelo riso ou de incredulidade perante certas situações, que preferiremos deixar esse processo para outra oportunidade.

O nome de Miike tem sido associado a um certo cinema transgressor, extremo, caracterizado por gore tão imaginativo quanto repelente e por algum kinky sex de 3º escalão. O realizador insiste que a sua obra é tematicamente diversificada e não deve ser rotulado como autor de filmes violentos. O que sucede é que a selecção para festivais de cinema e os lançamentos vídeo no Ocidente têm tendência a ir buscar os seus filmes mais “invulgares” — uma tendência que no último ano se tem alterado substancialmente, com a edição de um grande número de obras do realizador japonês, menos célebres — ou “infames”, conforme o ponto de vista — e sem as características anteriormente referidas (2).

Os estranhos encontros de Minami: à noite com a criatura que dá o título ao filme ("cabeça de vaca"), de manhã com uma nova personagem (Yoshino Kimika), que revela conhecê-lo surpreendentemente bem.

No meio de uma rede de personagens peculiares e de um punhado de momentos delirantes, «Gozu» mantém-se coerente ao seu universo, conseguindo suster uma linha narrativa “lógica” (ainda que com aspas). Como em outros filmes sobre yakuza do realizador japonês, as relações entre as personagens masculinas relacionam-se de uma forma que vai para lá do male-bonding. Aqui temos um yakuza tímido constrangido pela ordem de matar o seu superior, pelo qual parece sentir algo mais que admiração, respeito e confiança (3). A solução narrativa “lynchiana” resolve impasses morais sem a gravidade dramática de «Lost Highway» ou «Mulholland Dr.» e com uma conclusão mais estranha, visceral e, sobretudo, divertida, onde nem falta um breve lampejo de Truffaut. Será recomendável ver o filme uma primeira vez pelo humor e pelo "grotesco" e uma segunda para uma apreciação mais intelectualizada.

5

Leia também os textos sobre Miike em Sitges (2003):
Conferência de imprensa e Fórum Cinema Japonês

(1) Se a memória não me falha, a tradução na película seria mais literal do que a que chegou ao DVD. Aí escrevia-se algo como "cão yakuza treinado para matar yakuza", enquanto agora se opta pelo menos confuso, mas menos musical e coerente com a demência de Ozeki, "cão yakuza de ataque".

(2) Um número considerável de filmes de Miike está actualmente disponível nos EUA, com a chancela Pathfinder e Artsmagic e no Reino Unido, via Tartan.

(3) Eis uma referência pouco subtil a um filme de Hal Hartley.

Sitges 2003 (Grande Prémio Orient Express).O DVD americano (Pathfinder, R1) está razoavelmente servido de extras: um comentário áudio dos críticos Andy Klein e Wade Major (com o interesse limitado de qualquer peça similar sem a intervenção de cineastas e com alguma estupefacção perante a confusão entre Miike e o actor Hazama Kanpei — bolas, entrevistaram o homem e não o reconhecem?), making-of (20 min.), três entrevistas (total de 51 min.), onde se inclui uma “mesa redonda” com os cineastas Eli Roth («Cabin Fever») e Gillermo del Toro — um segmento pouco interessante, dada a óbvia tendência de se cair nos usuais “gosto muito do teu trabalho”, “és um génio”, etc. —, trailers, biografias e galerias de imagens. Acresce um ensaio por Tom Mes (editor do site Midnight Eye e autor do livro "Agitator – The Cinema of Takashi Miike") que aborda níveis de leitura do filme e se debruça sobre elementos culturais, nomeadamente o que se relaciona com o budismo, que poderão escapar ao espectador ocidental médio. Som Dolby 2.0 e imagem anamórfica, numa transferência que deixa escapar alguns artefactos. Atenção que há duas versões da Pathfinder: uma com cortes (R) e outra integral (“unrated director's cut”).

publicado online em 4/2/05

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