2046
Realizado por Wong Kar-wai
Hong Kong/ China/França/Alemanha, 2004 Cor – 109 min. Anamórfico.
Com: Tony Leung Chiu-wai, Gong Li, Faye Wong [Wang Fei], Kimura Takuya, Zhang Ziyi, Carina Lau Ka-ling, Chang Chen, Tongchai McIntyre, Dong Jie, Wang Sum, Siu Ping-lam, Maggie Cheung Man-yuk
drama romance
Poster
Chow (Leung) é um jornalista que ganha a vida a escrever ficção para um jornal. Actualmente, dedica-se a "2046", uma história futurista sobre um lugar ou um ano para onde as personagens se deslocam à procura das suas memórias perdidas. Depois de passar algum tempo em Singapura, regressa a Hong Kong e fica hospedado num hotel pequeno, mas com quartos suficientes para existir o número 2046. Esse número recorda-lhe a relação frustrada com Su Lizhen (Cheung), anos atrás, e pede ao dono (Wang) para ficar ali alojado, mas este sugere-lhe o 2047, enquanto o 2046 está em obras. O quarto inicialmente almejado acaba por ser ocupado por Bai Ling (Zhang), com quem Chow passa a encontrar-se regularmente.

«2046» traz de volta a personagem masculina do anterior «Disponível para Amar» (2000), Chow Mo-wan, interpretado por Tony Leung Chiu-wai. Maggie Cheung Man-yuk, que com ele partilhava o filme anterior, fica reduzida a uma memória fugaz. Na quase-ausência de Cheung, Wong Kar-wai reuniu alguns dos rostos femininos mais conhecidos e mais fotogénicos do cinema chinês contemporâneo: Gong Li, Zhang Ziyi, Wang Fei, Lau Ka-ling e Dong Jie (esta última, com uma presença insignificante, verdadeiramente en passant). Estas são as mulheres que ocupam a vida presente de Chow, e o mais relevante que têm em comum é o facto de não se chamarem Lizhen. (Bom, nem todas.)

Neste leque de estrelas de primeira linha do cinema chinês incluem-se três actrizes de duas gerações de protagonistas descobertas por Zhang Yimou: primeiro Gong Li («Hong Gaoliang» [«Red Sorghum»], 1987), depois Zhang Ziyi («O Caminho para Casa/Wode Fuqin Muqin», 1999) e Dong Jie («Shingfu Shiguang» [«Happy Times»], 2001). Wang Fei tem aqui a sua segunda presença num filme de Wong Kar-wai, ao lado de Leung Chiu-wai (a terceira, se contarmos «Tin Ha Mou Soeng/A Chinese Odyssey 2002»). Wang não é exactamente célebre no Ocidente, enquanto actriz, para o que contribui uma filmografia reduzida, mas muitos se recordarão certamente dela devido à fixação com a canção "California Dreaming" da sua personagem de «Chungking Express» (1994) [1].

A génese das personagens de «2046» não é em «In the Mood for Love» mas em «Ah Fei Jing Juen/Days of Being Wild» (1990), centrado em Yuddi (Leslie Cheung Kwok-wing) um playboy permanentemente insatisfeito, que encara as relações com o sexo oposto como funcionais e transitórias. É aí que surge a metáfora do pássaro sem pernas — tem de voar continuamente, sem poder nunca fixar-se em lugar algum —, uma justificação pretensamente filosófica para pôr fim a uma relação na qual não se quis investir, ridicularizada, aliás, pela personagem de Andy Lau Tak-wah [2]. Nesse filme conhecemos duas namoradas de Yuddi: Su Lizhen (Maggie Cheung Man-yuk), empregada de bar, e Lulu (Carina Lau Ka-ling), dançarina em clubes nocturnos. Há um segmento, súbito e inconsequente, que apresenta a personagem de Chow (Tony Leung Chiu-wai), que ficaria em suspenso até «In the Mood for Love», depois de abortado o projecto de um «Days of Being Wild 2».

Leung
Zhang
Wang
Lau
Gong
Mulheres da vida de Chow (Leung Chiu-wai, em cima): Zhang Ziyi, Wang Fei, Lau Ka-ling e Gong Li (de cima para baixo).
A relação dos percursos de Yuddi e Chow é suscitada pela recuperação da personagem de Lulu, de «Days of Being Wild», com o regresso da actriz Lau Ka-ling (companheira, na vida real, de Leung). No referido filme, primeiro de uma velada trilogia, as personagens não se chegam a cruzar. Em «2046», Chow refere um encontro fugaz entre os dois, do qual ela mal se lembra. No presente, Lulu e a filha mais velha do dono do hotel, Jingwen (Wang Fei), são as duas personagens femininas que não partilham uma relação íntima com Chow. Para “corrigir” essa situação, os seus escritos, que se aproximam de fantasias — se não sexuais, pelo menos imbuídas de uma espécie de glamour romântico —, incorporam-nas, transformando-as em andróides prontas a servir uma personagem central que não é mais que uma emanação do próprio autor, que se apropria do corpo do namorado japonês de Jingwen. O processo de substituição reflecte a consciência de que ela nunca será mais do que amiga ou colaboradora dele no mundo real, pois será sempre fiel ao único homem que ama — persegue o seu tianxia wushuang ou ideal romântico [3].

Se «2046» segue cronologicamente «In the Mood for Love», a sua linha narrativa é mais próxima de «Days of Being Wild», com a personagem de Leung Chiu-wai, a mover-se de forma similar à do malogrado Cheung no filme de 1990. Lizhen passa de secundária, (des)interesse romântico a personagem central e, posteriormente, a uma memória, uma figura etérea — um fantasma, como já se escreveu —, que vemos apenas fugazmente, mas que permeia todo o filme, uma vez que é ela que enforma o modo de vida presente de Chow. Yuddi não usava e abandonava as mulheres que o amavam como resposta à não consumação do seu "ideal romântico" [vd. nota 3), mas derivado da frustração de uma relação de maternidade inconsubstanciada, consequência da sua identidade indefinida. Um e outro partem para Singapura, por razões e com resultados diferentes. De uma forma ou de outra, ambos encontram o que procuram e ambos fracassam nessa busca. Chow encontra Lizhen, com quem o vemos logo no início do filme, mas não é a sua Lizhen.

«2046» teve uma génese atribulada, algo que não é raro na carreira do realizador natural de Shanghai. Wong começou por desenvolver um projecto chamado «Summer in Beijing», com Leung e Cheung, mas a impossibilidade de filmar na capital chinesa [4], levou à conversão noutro projecto que englobaria três histórias, de onde apenas uma sobreviveria, evoluindo para «In the Mood for Love». «2046» já estava em produção antes do filme anterior estar concluído, o que facilitou alguma interpenetração dos seus elementos narrativos [5]. A história repete-se: «2046» também começou por ser um tríptico, mas um dos segmentos cresceu e tomou conta do filme todo. E a estreia em Cannes, horas depois da cópia chegar a França também não foi novidade; na manhã do dia em que «In the Mood for Love» seria projectado ainda se ultimava a legendagem em francês de uma das bobinas.

Leung, Zhang 2046
«2046» é um filme inundado por uma inebriante estética visual.

«2046» traz uma alteração substancial na abordagem de um dos temas caros ao realizador. Onde antes se falava em esquecer o passado, fugir dele ou remover de facto as memórias de alguém — no caso de «Ashes of Time» —, agora Chow cria na sua história de ficção científica um local — 2046 — onde se encontram todas as memórias e onde nada se esquece. Não vemos muito de 2046, um belo cenário futurista digital, que permite também alojar o product placement da LG, passando-se mais tempo no comboio que para lá se dirige, mas podemos imaginar um mundo para onde todas as personagens dos filmes anteriores partiram, depois de desistirem de fugir ao passado. Esta aparente inversão de rumo por parte do cineasta pode corresponder a um amadurecimento, seu e/ou das suas personagens. Enquanto jovens convencemo-nos que começar de novo é sempre uma opção e podemos superar erros e decisões desastrosas; em velhos, vivemos com as nossas memórias.

Há também mudanças formais no último filme de Wong Kar-wai: para além da utilização das tecnologias digitais para criar o mundo de fantasia, concebido por Chow Mo-wan, é a primeira vez que o cineasta recorre ao scope. Se há casos em que se justifica uma referência às Belas Artes como metáfora para falar das características visuais de um filme, este é certamente um deles. Wong compõe rigorosa e esplendorosamente na tela mais larga — um formato que temos de preferir até porque é foolproof no que toca à projecção. A trabalhar magistralmente a luz e a cor, temos Christopher Doyle, regular director de fotografia de Wong, a quem se juntaram Lai Yui-fai («Infernal Affairs») e Kwan Pun-leung (realizador do making of de «Felizes Juntos»).

Finalmente, um aspecto que pode ser considerado estético ou substancial — conforme o ponto de vista — é o modo como Wong se foca agora sobre o plano físico das relações, por oposição ao quase platónico filme anterior, para o qual havia sido filmada uma cena com os protagonista na cama, mas que o realizador optou por não utilizar. Há um forte pendor erótico em «2046», mas nunca se ultrapassam as fronteiras delineadas pelo bom gosto estético e pelo fabuloso design de produção, que embebe cada plano do filme. (O design de produção é, mais uma vez, de William Chang Suk-ping, que colabora com Wong Kar-wai desde o seu primeiro filme).

Hotel Oriental
2046 é o último ano da Região Administrativa Especial de Hong Kong, que em 2047 será integrada plenamente na China. Wong não é de fazer comentários políticos directos ou óbvios nos seus filmes, algo incompatível com o modo como explora os relacionamentos entre as suas personagens e não há dúvida que se há aqui subtileza há também ironia [6]. Ou é apenas mais uma provocação por parte do realizador, que assim coloca o público e a crítica à espera de um filme de ficção científica ou de uma profunda metáfora política, sem que nenhum desses elementos esteja claramente presente no filme.

5

[1] Wang Fei/Faye Wong é uma das maiores estrelas da música pop chinesa, com uma carreira que se iniciou nos anos 80 e que se mantém em alta nos dias que correm. No período inicial da sua carreira, Wang gravou vários discos sob o nome artístico Wang Jingwen, com o qual é também originalmente creditada em «Chungking Express». O nome é recuperado, na íntegra, para a sua personagem em «2046». Wong Ching-man é a correspondente romanização do cantonês, de um nome que foi anglicizado Shirley Wong. Gravou duas canções para a BSO de «Chungking Express», ambas versões: "Dreams", dos Cranberries, e "Know Who You Are at Every Age", dos Cocteau Twins, mas desta última restam apenas uns segundos finais no filme. A banda escocesa viria a colaborar em algumas canções de Wang e esta interpretaria uma canção num dos discos dos Cocteau Twins (apenas disponível nas edições asiáticas; no resto do mundo a voz é de Elizabeth Fraser).

[2] Há também um trocadilho com o termo "fei" (voar) do título original, uma expressão que se atribui a um indivíduo "rebelde", um teddy boy (Ah Fei).

[3] Remete-se para o comentário a «A Chinese Odyssey 2002» (a expressão "tianxia wushuang" é o título original desse filme) e para um artigo, em inglês, publicado no site HongKongCinemagic, que deverá ser traduzido e desenvolvido em breve.

[4] O projecto «Summer in Beijing» foi abortado porque, para ser filmado na RPC, as autoridades, que não gostaram do título, precisavam de aprovar um guião.

[5] Em entrevista a Tony Rayns para a Sight and Sound de Agosto de 2000, Wong afirma que o conceito do “segredo” de Tony Leung, que vemos primeiro em «ITMFL», surgiu originalmente em «2046».

[6] Relembre-se que a produtora de Wong Kar-wai se chama, em chinês, Zedong, como o nome próprio de Mao.

Festa do Cinema Francês 2004. Os créditos na película são apenas em chinês e a cópia nacional não legenda nenhum nome do elenco ou o do realizador. Aos leitores que não se queiram sentir perdidos durante um ou dois minutos, enquanto os caracteres deslizam no ecrã, durante a sequência de créditos, sugerimos que memorizem ou recortem o texto abaixo e dele se façam acompanhar para a projecção.

梁朝偉
Leung Chiu-wai
鞏俐
Gong Li
木村拓哉
Kimura Takuya
王菲
Wang Fei
章子怡
Zhang Ziyi

劉嘉玲
Lau Kar-ling
張震
Zhang Zhen
董潔
Dong Jie
張曼玉
Cheung Man-yuk

王家衛
Wong Kar-wai

publicado online em 29/10/04

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