| Zhao (Zhao), cinquentão, solteirão, reformado e falido, procura a esposa perfeita: gorducha, para aquecê-lo nas noites de Inverno. Depois de encontrar a candidata ideal (Dong Lihua), Zhao vai ter de conseguir juntar uma considerável quantia em dinheiro para o casamento, não se coibindo de convencer a noiva de que é proprietário de um hotel muito bem sucedido. A mulher vive com o filho mimado (Leng) e a filha do ex-marido, Wu Ying (Dong Jie), uma rapariga cega de 18 anos, e vê em Zhao a oportunidade ideal para se ver livre dela, sugerindo-lhe que arranje um emprego para Ying no “hotel”. 
Depois de «O Caminho para Casa» e «Nenhum a Menos» (ambos de 1999), com «Xingfu Shiguang» (tempos ou dias felizes) o realizador Zhang Yimou mantém-se no terreno de um registo low profile, contando uma história sem complexidades, com personagens bem delineadas, que prosseguem objectivos simples e bem definidos e que se podem resumir, afinal, à busca pela felicidade. A acção de «Happy Times» decorre novamente na cidade (em Pequim, mas o realizador não mostra particular interesse pelo cenário de fundo), nos dias de hoje, em contraste com o cinema mais “clássico” de Zhang. Estamos perante um registo de comédia, com o desenvolvimento de temáticas que se vão revelando mais sérias à medida que o filme evolui, chegando a um final onde já não há muito para rir. O humor acaba por constituir um método de prender a audiência às movimentações das personagens e de, subtilmente, lhes reduzir as defesas, tornando o clímax emocional mais ressonante. Mas cedo no filme que se torna óbvio que nem tudo é para rir, em particular a partir do momento em que a madrasta – sem nome no filme e creditada como “Mulher Gorda” na versão chinesa e, aparentemente, de modo mais “correcto” e “engraçado”, na versão inglesa como “Chunky Momma” – e o seu filho revelam sentir um real desprezo por Ying. 
 
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| Zhao a caminho de um encontro, com as flores mais baratas do mercado. À direita: uma família feliz?
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O abandono de temas político-sociais por parte de Zhang deve-se certamente às dificuldades inerentes à aprovação do guião pelas autoridades, mas o realizador afirmou também que o público chinês já não está interessado em filmes que abordem temáticas como a Revolução Cultural e as suas consequências, no seio de uma sociedade que cada vez mais se aproxima da sociedade consumista (e materialista) ocidental. Mas a linearidade da história, por si só, não foi suficiente para que Zhang realizasse o filme livre de interferências, pois a comissão chinesa que regula o cinema pediu-lhe que transformasse Zhao e os seus amigos, originalmente desempregados da indústria fabril, em reformados. Ver desocupados homens que parecem ainda novos para estarem reformados, sem que se teçam comentários sobre a sua situação, pode suscitar alguma estranheza (mas mesmo com a remoção de referências específicas, acaba por ser mais fácil ao espectador assumir que são desempregados).
 
«Happy Times» não é o filme de Zhang Yimou universalmente mais apreciado e o próprio terá admitido ser aquele que menos gosta, no seio de uma obra que se iniciou em 1987, com «Hong Gaoliang» [Red Sorghum], depois de uma carreira como director de fotografia, e que teve já o seu ponto alto, a nível de sucesso comercial, em «Ying Xiong» [Hero], estreado em Dezembro de 2002 na China e Hong Kong. Para tal (des)apreciação pode contribuir o facto de que as expectativas dos que ainda esperavam um Zhang polémico (político) sejam continuamente quebradas, ao fim de três filmes tão pouco “grandiosos”.
 
 Há algo mais que não caiu bem perante muitas pessoas, em particular as que vêem uma mensagem “imoral” no filme e na história de uma rapariga cega que é enganada por um grupo de homens com muito tempo livre, parecendo transmitir-se a ideia de que tal não só é correcto como consiste numa grande simpatia da parte deles. Veja-se, por exemplo, o conhecido crítico norte-americano Roger Ebert, algo sensível a “questiúnculas” relacionadas com a “falta de honestidade” patente na “mensagem” de alguns filmes, que escreve um texto irónico do início ao fim, tentando ilustrar aos seus leitores o “logro” que têm pela frente e concluindo que se a generalidade dos seus colegas de profissão apreciaram o filme tal deverá resultar de uma concessão cultural (porque se trata de um filme chinês), uma vez que a premissa de «Happy Times» não funcionaria num filme com Steve Martin e Winona Ryder nos principais papéis (não é muito difícil de admiti-lo, pois não?) Não percebi muito bem como é que daqui se consegue passar à observação “sarcástica” de que os senhores são tão bem intencionados, enquanto enganam vergonhosamente a menina, que nem sequer a espreitam quando troca de roupa.|  |  | Zhao e os amigos constroem uma sala de massagens.
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Ebert e outros partem de um ponto de partida que é, a meu ver, errado. Não se coloca em causa que enganar terceiros é incorrecto, imoral ou desprezível e que tal acto é mais grave quando alguém se aproveita de fragilidades físicas ou emocionais que condicionam as capacidades perceptivas de outrem. O que é curioso, e que poderá ter escapado a alguns comentadores, é que “Xiao” Wu é mais perspicaz e, em certos aspectos, menos ingénua que aqueles homens (e uma mulher) plenos de experiência de vida, que acreditam realmente que poderiam levar a sua avante. É indiscutível que Zhao segue interesses próprios, de modo a poder levar por diante o casamento com a madrasta de Wu Ying, e que a encenação se destina a tentar mantê-la satisfeita até chegar ao altar. O interesse do filme, e a força que é conferida à sua resolução emocional, advém do modo como a relação entre Wu e Zhao vai evoluindo, à medida que entre eles se desenvolve uma relação de substituição pai-filha; perante o facto dela ter sido abandonada e não receber notícias do pai, ele procura ler-lhe uma carta ficcionada, para manter acesa nela a chama da esperança por um futuro melhor. Para Ebert tal seria outra desonestidade, mas seria redutor afirmar que Zhao está simplesmente a mentir à rapariga (deixar-se-ia enganar?), porquanto esse acto insere-se numa assunção gradual, ainda que inconsciente, por parte dele, da posição do pai ausente. Estas reacções algo ultra-PC parecem partir do princípio que uma personagem invisual precisa de protecção extra (por parte de críticos de cinema?) e que enganá-la é uma imoralidade inaceitável, que remove todo e qualquer interesse que poderia existir na narrativa. Outro filme onde figurem situações de burlas e fingimentos certamente não trará problema algum, desde que a “vítima” seja um indivíduo em perfeito estado de saúde e sem deficiências. 
 
 
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«Happy Times» conta com um elenco sólido em prestações convincentes. Zhao Benshan é um actor popular na TV da RPC, tendo participado n' «O Imperador e o Assassino» (1999), de Chen Kaige. Dong Jie começou a estudar na Academia de Dança de Pequim aos 10 anos e iniciou a carreira profissional nesse campo com 15. A jovem foi escolhida por entre largos milhares de raparigas, que se candidataram através da Internet e através da participação de nove jornais chineses no casting, numa operação mediática sem precedentes na República Popular. A Dong augura-se um futuro promissor, nem que seja apenas por termos em conta que Zhang Yimou foi responsável pelas estreias das actrizes Gong Li e Zhang Ziyi.
 
Após constatarem que o final do filme não agradou ao público das primeiras sessões, os produtores terão impelido Zhang a modificá-lo. O que é estranho é que o fim novo não é mais feliz que o original, apesar de acrescentar uma resolução mais definida à história, onde antes se tinha uma conclusão relativamente aberta. Talvez Zhang tenha querido vingar-se, desencantando um final ainda menos “comercial”, mas não deixa de ser estranho (e de lamentar) que com um filme desta natureza e na China, existam também estes constrangimentos que levam a alterações quando as primeiras projecções não agradam. Como o fim original nem sequer é incluído como extra nas edições em DVD de Hong Kong e dos EUA, é difícil aceitar que o realizador não tenha aprovado o novo que, em todo o caso, parece funcionar melhor do ponto de vista dramático.   |