Padrinhos de Tóquio/Tokyo Godfathers [en]
東京ゴッドファーザーズ
Realizado por Kon Satoshi
Japão, 2003 Cor – 90 min.
Com as vozes de: Emori Toru, Umegaki Yoshiaki, Okamoto Aya, Izuka Shozo, Kato Seizo, Ishimaru Hiroya, Saikachi Ryuji, Yara Yusaku, Terase Kyoko, Noto Mamiko
drama comédia anime animação
Capa DVD
Tóquio, 24 de Dezembro. Três sem-abrigo encontram um bebé abandonado. Gin (Emori) é um alcoólico de meia idade, Hana (Umegaki) uma ex-drag queen e Miyuki (Okamoto) uma adolescente de 16 anos que fugiu de casa. Gin e Miyuki querem entregar o bebé à polícia, mas Hana impõe os seus instintos maternais e convence os companheiros a procurarem a mãe de “Kiyoko”, para lhe perguntarem as razões do abandono. A investigação não é fácil, mas uma série de coincidências improváveis coloca-os no bom caminho.

Kon Satoshi celebrizou-se com dois filmes de animação para um público maduro, cujos textos, tratamento estético, composição e montagem nada ficam a dever a obras de temática similar em imagem real. A naturalidade com que o realizador manipula o meio e os temas escolhidos levam alguns a questionar “mas porquê fazer isto com bonecos animados e não com actores de carne e osso?” Kon, por seu lado, assume a intenção de mostrar que a anime tem muito mais para dar do que meninas jovens em trajes menores e combates de robots gigantes.

«Tokyo Godfathers» difere substancialmente de «Perfect Blue» (1998) e «Millennium Actress» (2001), as obras anteriores do realizador, ainda que estejam presentes marcas características do seu estilo. Estamos perante um filme leve e divertido, por oposição ao thriller negro e à exploração psicológica dos títulos precedentes.

Kon Satoshi gere drama e humor com mudanças paralelas no tom e no registo dos desenhos e da animação. As personagens assumem formas mais cartoonescas sempre que acometidas por algum histrionismo, voltando ao normal nos momentos mais sérios.

Com um bebé nos braços, Gin, Miyuki e Hana discutem que destino lhe dar.

Além do contraste no registo gráfico, «Tokyo Godfathers» é atípico como filme de Natal, pelo seu vincado pragmatismo. Os sem-abrigo estão pouco interessados em sermões religiosos, suportando-os apenas como meio para comerem o que lhes é oferecido por uma instituição de caridade.

O humor dispõe-se ao longo de uma investigação, tão complexa quanto improvável, levada a cabo pelos "Padrinhos". Kon estrutura uma narrativa que, sem se aferir preguiçosa, depende da coincidência. Depois de "entrarmos" na piada, aceitamos todas as possibilidades, as mais disparatadas soluções e o gozo com os mecanismos de deus ex machina que não se parecem esgotar.

A vertente socio-realista foi um risco assumido pelo realizador, uma vez que o grande público não estaria exactamente em pulgas para ver um filme protagonizado por sem-abrigo (para mais um travesti e um alcoólico). Outro factor que acentua o realismo da obra é o recurso a locais e edifícios de Tóquio, cuidadosamente adaptados para os cenários sobre os quais a animação se desenrola.

Procurando ultrapassar as adversidades, os "padrinhos" partem em busca da mãe da bebé.

Ao longo do percurso, os protagonistas encontram outras personagens desprezadas pela sociedade ou a quem a sorte simplesmente tem virado as costas: os imigrantes da América do Sul, o casal que abandonou a criança, os travestis do bar nocturno, outros sem-abrigo, etc.

Mais do que imbuído num espírito natalício que irá premiar aqueles que se portam bem — não é exactamente o que sucede, pelo menos não em relação a todos — Kon cria um contínuo encadeamento de situações destinado a fechar o círculo das três personagens e das suas relações com o passado que quiseram deixar para trás.

Os encontros inesperados e improváveis sucedem-se ao longo do percurso.

Ao longo do filme, são várias as referências a anjos: o local onde encontramos Miyuki nos momentos iniciais, a rapariga do clube nocturno que primeiro se cruza com Gin, o nome do gato da adolescente e a própria "Kiyoko" será referida como tal. Mas Kon, ainda que disponha ingredientes de fantasia, não está interessado nos elementos religiosos, e o progresso da narrativa sustém-se nas necessidades de humor e no abuso dos mecanismos da coincidência. No final, não iremos ouvir ninguém a dizer que mais um anjo ganhou as suas asas.

Apesar de apto para consumo familiar, «Tokyo Godfathers» não deixa de manter uma das fixações do realizador: personagens femininas psicologicamente esgotadas, à beira do desespero, ainda que aqui o espírito perturbado acabe por não ser uma das personagens principais.

Num filme que acabará por ter os pés assentes na terra, as imagens angelicais repetem-se.

Uma nota ainda para a música de Suzuki Keiichi, do grupo Moon Riders (já com 30 anos de existência), que colaboraria no mesmo ano com Kitano Takeshi em «Zatoichi». Os Moon Riders interpretam, durante os créditos finais, uma canção sobre uma reinterpretação da 9ª Sinfonia de Beethoven (inspirada no trabalho de Walter Carlos n'«A Laranja Mecânica», de acordo com Suzuki).

Mais do que um filme de Natal, «Tokyo Godfathers» é uma excelente proposta de cinema, animado ou não, para qualquer dia do ano, que se junta a muitas outras que gostaríamos de ter visto nas nossas salas de cinema.

45

Sitges 2003 (Prémio do Público para a Melhor Longa-Metragem de Animação e Menção Especial). Distribuído em DVD pela Columbia, o que deverá garantir qualidade e extras relativamente standardizados e, possivelmente, sem redundâncias a nível de pistas sonoras.

Nesta cena de «Tokyo Godfathers» podemos ver os posters das duas anteriores longas-metragens de Kon Satoshi. À direita, reprodução de um desenho de Kon, feito para ser distribuido com o DVD (clique para ampliar).
A edição R1 inclui uma peça documental de 22 minutos (em japonês, com legendas), focando várias fases de produção, imagens da estreia e entrevistas. Um dos pontos de maior interesse é a "entrevista" que a actriz Okamoto Aya faz a Kon Satoshi. Trailers de «Tokyo Godfathers», «Astro Boy», «Cowboy Bebop: The Movie», «Cyborg 009», «Memories», «Metropolis», «Returner» e «Steamboy». Transferência anamórfica (1.85:1), com ligeiro windowboxing para compensar overscan televisivo, com uma única pista de som — Japonês Dolby 5.1. Legendas em inglês, francês, espanhol e português (do Brasil: “Eu sei, eu sei, ele não é sua mãe. É só uma bicha sem-teto.”) Inclui também uma reprodução (tamanho do habitual folheto com os capítulos) de um desenho a preto e branco com a personagem Miyuki, feito especialmente por Kon Satoshi para esta edição (assinado e datado Janeiro de 2004). O filme existe também no mercado nacional, mas desconhecemos eventuais disparidades a nível de conteúdo.

publicado online em 25/12/05

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