Sigan [Time]
시간
Realizado por Kim Gi-deok [Kim Ki-duk]
Coreia do Sul/Japão, 2006 Cor – 98 min.
Com: Seong Hyeon-a, Ha Jeong-u, Park Ji-yeon, Kim Seong-min
drama
A insegurança de Se-hui (Park) na relação com Ji-u (Ha) leva-a a comportamentos histéricos e embaraçosos em locais públicos. Convencida que o namorado está farto dela, decide afastar-se para fazer uma operação plástica. Ji-u continua à espera do regresso de Se-hui, desconhecendo que ela mudou de fisionomia. Entretanto, é tentado por outras mulheres, incluindo a nova empregada da coffee shop que frequenta, Sae-hui (Seong). 1

«Time», o novo filme de Kim Ki-duk estreou embebido na polémica das declarações do realizador contra o público coreano — que “não entende” os seus filmes — e contra a indústria ou “os filmes de 10 milhões de espectadores”, que têm o desplante de produzir entretenimento que atrai o público em massa [ver caixa].

As operações plásticas são muito comuns na Coreia do Sul, onde há uma grande obsessão com a beleza por parte das mulheres jovens. Alterações aos olhos ou ao nariz serão as mais banais. Não consegui encontrar estatísticas oficiais sobre a percentagem de mulheres que se submetem a intervenções cirúrgicas por razões estéticas, mas ouvi ou li referências a “uma em cada quatro” e a “50%” — um número talvez exagerado (?). Quem circular em Gangnam-gu, em Seul, onde a indústria cinematográfica se tem estado a concentrar, e olhar para a profusão de clínicas dedicadas a operações plásticas, terá uma perspectiva da vulgarização destas práticas correctivas ou estéticas.

Kim Ki-duk, no entanto, mais do que preocupado em criticar uma sociedade adepta da estandardização das aparências, explora, uma vez mais, obsessões levadas ao limite e comportamentos extremos. 2

Na segunda semana de Setembro, a Spongehouse passou a exibir o filme no Cine Core, em Jongno, Seul, numa cópia com legendas em inglês. Concluindo-se que Kim é mais apreciado no exterior do que na Coreia, não é má ideia apelar aos estrangeiros que vivem na capital. Pela nossa parte, agradecemos.

De anotar que apesar do cinema de Kim ser associado a uma certa misoginia ou insensibilidade na construção de personagens femininas, a plateia era constituída sobretudo por mulheres (incluindo a quase totalidade dos estrangeiros presentes). Este não é o filme do realizador que mais facilmente estraga o dia de uma feminista, mas a personagem central caracteriza-se por uma histeria em último grau, próxima da caricatura.

Conhecendo a obra anterior de Kim, diríamos que se trata da forma de exprimir o conceito ou mensagem; a subtileza não tem sido uma das suas características mais notórias. Se-hui berra e atira-se às mulheres que se aproximam do namorado, como um animal cujo território foi invadido. O seu comportamento sugere um internamento numa instituição mental, antes de qualquer tratamento estético.

A partir daí, aquele que será o filme de Kim Ki-duk com mais diálogos aventura-se no campo do humor — há uma sequência muito divertida com uma máscara — e lida com material que poderia ser aproveitado por um thriller (Se-hui não nos parece muito distante de algumas psicopatas de certos filmes), faltando, claro, a chacina de algumas personagens secundárias.

Talvez não exista, no final, o ponto de exclamação rotineiro do cinema de horror, mas, a certa altura no filme, quase somos levados a perguntar-nos se Kim não colocou por ali uma homenagem a «Darkman» (1990), de Sam Raimi, quando, instintivamente, procuramos o rosto de Bruce Campbell numa multidão nas ruas de Seul. 3

Pouco antes da estreia do filme na Coreia, Kim Ki-duk protagonizou um episódio que deu que falar nos media locais. Na conferência de imprensa de «Sigan» afirmou que se o filme fosse mal recebido os seus próximos trabalhos não seriam lançados no mercado doméstico nem submetidos a festivais de cinema coreanos.

O realizador lamentou que o público local não entendia os seus filmes, apesar dos mesmos serem bem sucedidos no estrangeiro, em festivais de cinema e comercialmente. Kim sugeriu que a sociedade coreana não tem capacidade de olhar para os seus podres, que os seus filmes, supostamente, mostram. Sendo questionado — a despropósito — sobre o que pensava do sucesso de «The Host», o realizador deu-o como o paradigma do encontro entre o nível dos filmes e o nível das audiências coreanas.

Duas semanas depois, Kim pediria desculpas pelos comentários, e pela sua "arrogância" de "tentar educar os espectadores coreanos". Acrescentando que a reacção do público o levou a reanalisar os seus filmes: "Começo a pensar que fiz filmes miseráveis, auto-indulgentes, exagerando o lado negro e feio da cultura coreana."

O realizador pediu também compreensão ao público, pela sua "forma brutal de exprimir o facto de que este é um mercado onde é difícil distribuir filmes de baixo orçamento."

«Time» não era para ser distribuído de todo na Coreia, depois do fracasso rotundo de «Hwal» [«The Bow»], que estreou com uma cópia em Seul e não chegou a completar uma semana de exibição, vendendo 1398 bilhetes. O distribuidor independente Spongehouse decidiu importar o filme.

(Citações de Kim adaptadas de Chosun.com).

Paralelo ao modo como Kim se concentra no tema de cada filme e que o leva, por vezes, a ser demasiado óbvio, é um uso minimalista dos cenários — característica da generalidade dos filmes do realizador —, que reforça o abstraccionismo da linguagem. As personagens vão repetidas vezes aos mesmos locais ao longo do filme: uma ilha com esculturas "provocadoras", a clínica, o café, etc.

Ainda que «Time» não se compadeça inteiramente a ser criticado pela sua falta de realismo, as cenas em que uma personagem estuda as mãos de outra, como meio de confirmar ou não que se trata do amante desaparecido, fazem-nos torcer o nariz, depois de contactos íntimos não parecerem adequados a servir a mesma função. Haverão outras partes do corpo, outras características físicas, tão ou mais facilmente reconhecíveis do que as mãos.


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1 Os nomes de duas personagens femininas do filme têm fonética similar. A confusão é intencional, mas a legendagem regista-os como “See-hee” e “Seh-hee”. Em inglês, leríamos o primeiro como “si” e o segundo como “sé”, mas, na realidade, ambos soam próximo de “sé”. Há uma cena no filme, em que uma personagem risca o caracter se com vista a substitui-lo por sae. O som “é” do segundo é mais aberto que o primeiro. A distinção só será possível por ouvidos treinados pois, pelo menos para um português, um 'é' é um 'é' ou um 'ê' (quando não é mudo). O segundo caracter do nome ( hui) é alternativamente romanizado “hee”.

2 A primeira vez que ouvi que “uma em cada quatro mulheres sul-coreanas fez uma operação plástica” foi num grupo onde estavam três residentes de Seul, enquadradas no perfil (mulher jovem coreana). Nenhuma se acusou, pelo que concluí que a quarta (a que recorreu a cirurgia plástica) não estava presente.

A prática é comummente justificada pela pressão social, para um bom casamento ou um bom emprego.

Sugestões cinematográficas onde o tema é abordado directamente: «Memento Mori» (1999), disfarçado de filme de horror, e «If You Were Me» (2003), filme em seis segmentos, sobre questões de discriminação na Coreia do Sul. O segmento “The Weight of Her”, dirigido por Im Sun-rye, foca especificamente a pressão sobre raparigas, estudantes de liceu, para serem bonitas e se preocuparem com o aspecto físico — algo mais importante que as próprias notas.

3 Para os leitores pouco familiarizados com cinema de género, «Darkman» («Vingança sem Rosto», em português), é um filme realizado por Sam Raimi, conhecido por «Evil Dead» (e outro mais recente sobre um miúdo com poderes de uma aranha (!), cujo título me escapa de momento), sobre um herói desfigurado que muda de cara como quem muda de camisa. Bruce Campbell é o actor-fetiche do realizador, que passou de protagonista a cameo quando Raimi entrou no sistema de Hollywood.

Spongehouse (Cine Core), Seul.

publicado online em 14/9/06

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