Kong Shan Lingyu [Raining in the Mountain]
空山靈雨 (kōng shān líng yŭ)
Realizado por King Hu Jinquan
Taiwan, 1979 Cor – 120 min. Anamórfico.
Com: Hsu Feng, Sun Yue, Tong Ling, Tian Feng, Chia Hsiang, Ming Tsai, Lu Chan, Shih Chun
drama wuxia artes-marciais
Capa DVD
O abade de um mosteiro prepara-se para determinar a sua sucessão. Três dos seus mais distintos discípulos são os candidatos óbvios. O mestre Wu Wai (Chia), um respeitado estudioso do budismo, o escudeiro Wen (Sun) e o General Wang (Tian), são convidados para passarem alguns dias no mosteiro, para que o abade possa aproveitar dos seus conselhos. Qiu Ming (Tong) condenado por furto, paga pela conversão da pena à vida monástica. O local é santuário de várias relíquias e textos sagrados. Um sutra valioso tenta alguns dos que por lá passam. Uma ladra habilidosa (Hsu), passa-se por concubina de Wen para o ajudar a pôr as mãos no pergaminho.

«Raining in the Mountain» é, junto com «A Touch of Zen» e «Come Drink with Me», considerado um dos títulos máximos da obra de King Hu, um realizador ainda pouco divulgado no Ocidente. Hu tem uma linguagem nos antípodas de um Zhang Che ou das artes marciais populares nos anos 70 em Hong Kong: as personagens principais tendem a ser femininas e as histórias assentam mais na filosofia do que em vinganças brutais e sangrentas e relações de amizade intensas entre irmãos de sangue.

Ao contrário dos dois títulos anteriormente citados, em «Raining in the Mountain» a protagonista não é uma mulher, mas a personagem interpretada por Hsu Feng ocupa um papel essencial no meio de uma complexa teia de interesses e intrigas. Paradoxalmente, as personagens de Hsu e de Tong Ling, automaticamente marcadas como criminosas e imorais, revelam-se os símbolos morais máximos no espaço vasto, mas confinado, do templo.

Os detentores de altos cargos são os principais interessados em obter ilicitamente o raro pergaminho.

O templo budista é, desde logo, um retiro afastado de comportamentos mundanos, local de cultivo de mentes e espíritos, libertos e libertando-se de atitudes e comportamentos impuros da sociedade exterior. Mas tal cenário pode ser também uma representação da própria sociedade, ilustrando uma integridade moral que contrasta com os egoísmos e a avidez de alguns dos peões que por ali se movem.

Existem dois níveis de imoralidade que rivalizam e serão combatidos — compassivamente, de um modo geral, através de violência numa ocasião —, pelos que representam a esclarecida ou iluminada via budista. Por um lado, a tentativa de possuir o pergaminho raro e valioso — apesar dos avisos de que o valor está no texto do sutra, nas palavras, e não no meio onde foi registado —, por outro, as intrigas e manipulações dos vários interessados, directos e indirectos, na sucessão pelo poder.

Qiu Ming (Tong Ling) paga pela sua libertação, sob a condição de se entregar à vida monástica.

Se quisermos isolar uma mensagem no filme de King Hu, diríamos que aparência e posição social, a nível militar ou político, são insignificantes perante posturas morais superiores; coração puro e consciência pacificada. Não é por coincidência que as personagens que detêm poder e riqueza são aquelas que querem colocar as mãos no sutra e não um qualquer ladrão miserável. A ladra e Qiu ming, acusado injustamente de roubar, acabam por se revelar os mais puros, não entre pares mas no seio dos que ocupam uma posição social elevada.

Quando o abade convoca os seus conselheiros já pensará que é ele que pode fazer algo por eles e não o contrário. De todos os ilustres visitantes apenas um se encontra liberto da corrupção do mundo exterior — Wu Wai, referido como um leigo com conhecimentos de budismo superiores a muitos estudiosos monásticos. O velho mestre, quase sempre nas sombras, encaminha os faltosos sem se lhes opor directamente, chegando mesmo, talvez, a ajudá-los a cometer as suas faltas — para que estas se tornem evidentes, para que o erro venha à superfície e para que a Via correcta lhes seja indicada.

As discípulas do Mestre Wu Wai revelam-se mais do que meras auxiliares.

Formalmente filme de artes marciais, «Raining in the Mountain» desenvolve uma narrativa complexa assente num vasto número de personagens e interesses em conflito. Hu está menos interessado em rodar acção do que em potenciar o choque entre a moral (budista, mas, no fundo, universal) e a corrupção dos princípios. Sendo talvez injusto valorá-lo enquanto parte de um género — as coreografias estão datadas e os efeitos assentam muito na montagem, com muitos planos curtos e cortes súbitos —, trata-se, sem dúvida, de uma obra maior do cinema chinês, com direcção segura e fortemente moral e moralizador, sem paternalizar ou simplificar o que tem para dizer.

5

DVD FSF, editado em França (R0, R2 na capa), com uma óptima transferência, sobretudo tendo em conta a idade do filme, som original mandarim (e mono), legendas em francês e inglês. Os extras são à base de texto.

publicado online em 12/8/05

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