Omohide Poro Poro [Only Yesterday]
おもひでぽろぽろ
Realizado por Takahata Isao
Japão, 1991 Cor – 118 min.
Com as vozes de: Imai Miki, Yanagiba Toshiro, Honna Yuko, Iizuka Mayumi, Ito Masahiro, Kondo Yoshimasa, Masuda Yuki, Minowa Yuko, Takahashi Kazuo, Terada Michie
drama romance animação anime animé
Capa DVD
Okajima Taeko (Imai), de 27 anos, trabalha num escritório em Tóquio. A sua família, incluindo os avós, é natural da metrópole e, em criança, ela sentia inveja das colegas que, nas férias do Verão, saíam da cidade e iam para o campo. Já em adulta, decidiu adoptar uma "terra natal", através da família do cunhado, proprietária de terrenos em Yamagata, a cerca de 290km a norte da capital. Taeko passa uns dias na aldeia, pela segunda vez, para trabalhar na colheita de flores usadas como corantes em cosméticos. As memórias dos seus 10 anos perseguem-na.

Takahata Isao trabalha com Miyazaki Hayao desde «Horus, Princípe do Sol» (1968) — a sua primeira realização —, e começou a produzir os filmes deste desde «Kaze no Tani no Nausicaa» [«Nausicaa of the Valley of the Wind»] (1984), obra que levou o grupo Tokuma Shoten a criar o Studio Ghibli, no ano seguinte. Takahata é também o realizador de várias séries animadas, pré-Ghibli, que passaram pela TV portuguesa, recordadas hoje por muitos que as viram na infância ou pré-adolescência, nomeadamente "Heidi/Arapusu no Shoujo Haiji" (1974) e "Marco/Haha wo Tazunete Sanzen-ri" (1976). Assinou também dois episódios de "Conan, o Rapaz do Futuro/Mirai Shonen Konan" (os restantes foram realizados por Miyazaki).

«Omohide Poro Poro», que viria a ser o número 1 das bilheteiras japonesas em 1991, baseia-se numa manga da autoria de Okamoto Hotaru, com desenhos de Tone Yuko. A história original ilustra a vida de Taeko enquanto criança; todo o segmento no presente (o início dos anos 80, no filme) é uma extrapolação narrativa de Takahata, que a considerou necessária para tornar o material mais interessante e mais consistente enquanto obra cinematográfica, uma vez que a manga era constituída por uma sequência de episódios, requerendo-se o estabelecimento de um fio de continuidade. O processo permitiu que «Only Yesterday» se tornasse um filme mais aprazível para as audiências adultas e não apenas uma obra sobre os dilemas do dia-a-dia de uma criança. O resultado é de uma maturidade invulgar no cinema de animação, mas que não surpreenderá quem estiver familiarizado com a obra Ghibli.

Tóquio, 1982. Taeko pede uns dias de férias do escritório para ir trabalhar para o campo.

«Majo no Takkyubin» [«Kiki's Delivery Service»] (1989), de Miyazaki, e «Mimi wo Sumaseba» [«Whisper of the Heart»] (1995) (1), de Kondo Yoshifumi, têm também como personagens centrais raparigas muito jovens (13 e 14 anos, respectivamente) e são exemplo paradigmáticos de como é possível tratar de forma madura este material, para mais num meio como a animação que, para algumas pessoas, mantém o estigma de ser destinado, por omissão, ao público infantil. O mercado, diríamos, estaria mais receptivo a comédias light sobre pré-adolescentes, que seriam apenas apreciadas por uma faixa do público situada em redor desse escalão etário. No entanto, os cineastas insistem que é possível fazer filmes para uma audiência alargada; obras apreciadas, pelo seu valor artístico intrínseco, por um público adulto, chegando, inclusive, a merecer epítetos de obras-primas, ao mesmo tempo que se mantém substancialmente "familiares", podendo ser vistas e apreciadas por um vasto segmento infanto-juvenil. Estas obras animadas demonstram como se podem abordar temas sérios e relevantes, sem descurar valores artísticos ou o entretenimento e sem a necessidade de separar duas "vertentes", com uma história ligeira e despretensiosa, 80 minutos de sketches humorísticos, para depois rematar com lições de moral, caídas do céu, nos últimos 10 minutos de filme.

Tóquio, 1966. A vida escolar e familiar de uma menina de 10 anos.

A personagem de Taeko ou a sua extrapolação por Takahata, a Taeko adulta, está, tal como Kiki e Shimizu, nos filmes referidos no parágrafo anterior, numa encruzilhada da sua vida. As meninas dos outros filmes, de certa forma "demasiado adultas" aos nossos olhos, têm um futuro pela frente e sentem-se pressionadas, pela família e pela sociedade, a tomar decisões, a definirem-se. Taeko, com 27 anos, sente outra espécie de pressão; aos olhos da família, já devia estar casada e a educar criancinhas. No entanto, ela não se mostra preocupada com a necessidade de constituir uma família tradicional, até porque, como a própria diz, nos dias que correm — há 20 e tal anos atrás, note-se — é normal uma mulher da sua idade permanecer solteira.

Aquilo que inunda a mente de Taeko e que começa por invocar as memórias dos seus 10 anos é o desejo profundo pelo contacto com a vida no campo. O cinema de Miyazaki e Takahata tem fortes preocupações ecológicas — ainda que os realizadores o rejeitem, enquanto rótulo —, algo vincado em filmes como «Nausicaa», do primeiro, ou «Heisei Tanuki Gassen Pompoko» (1994), do segundo. O que os realizadores professam, analisando o seu conjunto de obra, será mais um modo de vida natural e um crescimento industrial sustentado, do que propriamente o abraçar da “ecologia”, que soa mais a uma opção política do a um verdadeiro sentir. Nessas obras pincela-se uma imagem do campo como um reduto, local de fuga, longe da vida atribulada das grandes cidades, que afastam o homem da natureza e de um estilo de vida saudável. Taeko sente um grande vazio pelo facto de não ter uma terra natal onde pudesse passar algumas semanas de férias durante o Verão. A necessidade de preencher esse vazio é, no contexto da obra de Takahata e Miyazaki, o chamado da natureza.

A vida de Taeko no 5º ano é ilustrada através de sequência soltas, ligadas por alguma continuidade, sob um fundo de época pintado com realismo e riqueza de pormenores, no modo como se mostra a vida em família, a cultura da época, música pop ou programas populares na televisão. Mesmo tratando-se de uma época e cultura estranhas ao espectador-leitor é inevitável não recordar, por essa via, também um pouco do nosso próprio passado, enquanto alunos da escola primária ou do "ciclo preparatório" (ainda existe algo com esse nome?), bem como o relacionamento, por vezes conturbado, com a família e os colegas, as notas, as birras motivadas pelo egocentrismo próprio da idade, etc. Takahata domina com mestria os pontos de vista da personagem. Não é a perspectiva de um adulto que transparece na história e nos diálogos que circundam a pequena Taeko dos anos 60; connosco é partilhada a perspectiva pura de uma criança. Pegue-se num momento que é certamente um dos pontos altos do filme, nos segmentos de flashback, quando a menina, depois de quebrar barreiras de relacionamento, sobe no céu, nada nas nuvens.

A persona passada de Taeko torna-se cada vez mais presente, preparando-se um clímax que, invulgarmente, se desenrola ao longo dos créditos. Uma opção curiosa, mas não única na cinematografia Ghibli, ainda que seja mais frequente a ilustração de "epílogos" e não a efectiva continuidade de uma situação que só se consuma nesses instantes em que, supostamente, o público apressado já vai com o talão do parking na mão, a caminho da máquina de pagamento. Nestes momentos finais, há contacto, de facto, entre passado e futuro, mas não se entra no campo da fantasia: há antes uma materialização simbólica da resolução de desejos que a Taeko criança viu protelados por 17 anos e que quer agora partilhar com o seu "Eu" adulto.

5

(1) Taeko com dez anos é interpretada por Honna Yuko, a mesma artista de voz que seria Shizuku, a protagonista de «Whisper of the Heart», quatro anos mais tarde.

Visionado em DVD de Hong Kong (R3), com as características habituais da colecção Ghibli distribuída pela IVL: um segundo disco com extras que se reduzem a trailers e aos storyboards integrais, acompanhados apenas pelo som cantonês do filme.

publicado online em 29/11/04

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