Jing Mo Ying Hung/Fist of Legend
精武英雄 (Jīng Wŭ Yīng Xióng)
Realizado por Gordon Chan Ka-seung
Hong Kong, 1994 Cor – 98 min.
Com: Jet Li Lianjie, Nakayama Shinobu, Chin Siu-ho, Ada Choi Siu-fun, Billy Chow Bei-lei, Paul Chiang Pui, Kurata Yasuaki, Yeung Cheung-yan
drama época artes-marciais
Capa DVD
DVD HK Video (França).
Década de 20 do século passado. A China é uma república há pouco mais de dez anos, mas não há ainda um centro de poder unificado. Existem várias concessões sob o controle de potências estrangeiras, como o Reino Unido e o Japão, cujo poder militarista manifesta interesses expansionistas pelo continente asiático. Chen Zhen (Li) estuda no Japão, onde tem conhecimento da morte do seu mestre, Huo Yuanjia, em Shanghai, durante um combate com Akulagawa, do clã japonês Dragão Negro. Chen parte para a China, deixando a namorada japonesa, Mitsuko (Nakayama). Em Shanghai, Chen constata que o combate que levou à morte de Huo foi viciado, mas, entretanto, vê-se confrontado com uma acusação de homicídio. Remake de «Cheng Miu Moon/Fist of Fury» (1971) de Lo Wei, com Bruce Li Xiaolong.

«Fist of Legend» é um dos mais célebres filmes de artes marciais dos tempos modernos, sendo frequentemente colocado em listas dos melhores filmes produzidos em Hong Kong, qualquer que seja o seu "género". As reacções positivas ao filme abrangem tanto os fãs de filmes de acção como a crítica "especializada", devendo-se tal à excelente harmonia que Gordan Chan soube manter entre o drama e a acção. Este reconhecimento não foi imediato, pelo menos não em Hong Kong, onde a recepção do público foi morna. Os principais envolvidos – e Li assume também a posição de produtor – não se arrependeram, até porque o impacto internacional foi essencial nos contratos de Yuen Woo-ping e Jet Li com estúdios de Hollywood.

Chan e Li optaram por evitar colagens ao filme com o qual seria inevitavelmente comparado, uma vez que se trata de um remake – «Fist of Fury» –, da mesma forma que a performance física de Jet Li nunca se procurou aproximar da de Bruce Lee, até porque os tempos eram outros e o estilo de encenar e filmar acção nos anos 70 muito dificilmente poderiam conviver com a acção mais realista, as coreografias mais intrincadas ou o modo de enquadrar e montar do cinema de Hong Kong dos anos 80-90.

Dois emblemáticos momentos do cinema de artes marciais: Lee contra Kurata, à esquerda, e contra Chow, à direita.

A história-base dos dois filmes é naturalmente similar. Ambos se baseiam num facto histórico, a morte do mestre Huo Yuenjia (aparece uma fotografia real em ambas as obras), que – de acordo com Bey Logan – foi, de facto, um pouco suspeita. As personagens centrais são substancialmente diferentes: Lee é uma máquina de matar irracional, possuído pelo espírito da vingança, que toma conta do seu corpo (nas palavras de Christophe Gans); Jet Li encarna um Chen em perfeito controle da sua mente, calmo e com consciência das consequências dos seus actos. Narrativamente, outra diferença relevante é o modo como os japoneses são retratados: no primeiro filme, são apresentados como homicidas sanguinários, sem quaisquer laivos de caracterização ou características redentoras; em «Fist of Legend», há bons japoneses e há maus japoneses, estabelecendo-se uma clara oposição entre a honra e a honestidade dos praticantes de artes marciais e de políticos ingénuos – a figura simpática do diplomata – e as ambições de domínio e expansão dos militares, decididos em obter resultados a qualquer custo. Esta clara oposição moral reflecte-se também na disputa sobre quem detém o verdadeiro "espírito do samurai".

Li Nakayama
Li (Chen Zhen) e Nakayama (Mitsuko).
Um factor de grande enriquecimento narrativo e dramático é a personagem de Mitsuko, interpretada com uma característica distinção, difícil de encontrar em actrizes não japonesas, por Nakayama Shinobu (em «Fist of Fury» o papel do "interesse romântico" de Lee/Chen é desempenhado por Nora Miao Ker-hsui, uma jovem de Jingwu Mun). Mitsuko está longe de ser um adorno, antes se revela um elemento vital no conflito cultural, resultante da ocupação do território, sendo sintomático o modo como a escola de Chen encara a relação de Lee com Mitsuko, por oposição à de Ting-en (Chin) com Hsiao Hung. Para além de questionar a "fidelidade" do protagonista às suas raízes e à sua cultura, a personagem também dá vida a um conflito no âmbito do drama romântico, devido ao modo como se expõe publicamente, não deixando grandes hipóteses a Chen, que, além de ser um patriota chinês, no seio de um país ocupado e controlado por várias potências estrangeiras, é também um homem de honra e com sentimentos. Aqui se pode também estabelecer nova diferença com o Chen Zhen de Bruce Lee, para o qual não havia qualquer hesitação, nem nada que o pudesse desviar do seu objectivo final.

Chen Zhen contempla a "contenção" (ren).
Em relação à representação das artes marciais, «Fist of Legend» beneficiou do trabalho do experiente Yuen Woo-ping e da visão dramática de Gordon Chan. Em filmes de artes marciais, em Hong Kong, é natural que o director de acção receba um crédito ao mesmo nível do realizador do filme e que este nem sequer intervenha na rodagem dessas cenas, podendo nem sequer estar presente no estúdio. O director de artes marciais cria as coreografias, escolhe a posição das câmaras e compõe os enquadramentos, para além de ter um olho na fase de montagem; isto é, tem uma visão completa do produto final (por alguma razão o trabalho dos coreógrafos de acção contratados por Hollywood continua a ter o aspecto aborrecido da acção a la Hollywood). Em «Fist of Legend» houve um compromisso, pois Chan definiu o estilo do filme, incluindo a acção, ao mesmo tempo que permitiu que Yuen fizesse o seu trabalho, sem grande interferência, para além de algumas limitações: por exemplo, Chan garantiu que os interiores tivessem tectos baixos, para que Yuen não se lembrasse de usar fios. Chan também optou por takes falhados, por pensar que davam um tom mais naturalista à acção. Por exemplo, numa cena em que um oponente de Chen Zhen é projectado pelos ares, sendo suposto atravessar uma janela, o realizador preferiu o take em que o duplo fica atabalhoadamente pendurado a meio caminho.

Chen visita o dojo japonês e não descalça os sapatos.
A equipa de Yuen Woo-ping integrou dois dos seus irmãos, Cheung-yan e Sun-yi, além de Kuk Hin-chiu. Os Yuen, entre extensos créditos, trabalharam também numa outra referência incontornável do cinema de artes marciais dos anos 90, «Wong Fei-hung/Once Upon a Time in China» (1990) de Tsui Hark. Yuen Cheung-yan, que também desempenha aqui o papel do chefe da polícia, inclui também no seu currículo os “efeitos especiais de artes marciais” do pós-moderno «Os Anjos de Charlie» (2000). Com a contratação de Billy Chow e do japonês Kurata Yasuaki – secundário habitual de filmes de acção produzidos na década precedente a «Fist of Legend», como «Kei Mau Miu Gai Ng Fook Sing/Winners and Sinners» (1983) ou «Foo Gwai Lit Che/Millionaire's Express» (1986), ambos de Sammo Hung Kam-bo – Gordon Chan tinha os ingredientes ideais para cozinhar este excelente filme de artes marciais. Segundo o realizador, em entrevista conduzida para integrar o DVD francês da HK Video, Chow – habituado a performances exigentes ao lado de Sammo Hung («Kwan Lung Hei Fung/Pedicab Driver», por exemplo) e Jackie Chan («Kei Chik/Miracles») – ficou com as pernas repletas de hemorragias internas, durante a rodagem da cena final e, ainda assim, insistia que estava tudo bem, não querendo interromper as filmagens. Regressaria posteriormente do hospital para o estúdio, preocupado com a possibilidade de Yuen Woo-ping ainda precisar dele para repetir algum take. O impacto das cenas de acção em filmes do género exigia verdadeiro sacrifício físico por parte dos actores e duplos: nada de golpes a passar ao lado do corpo, camuflados pela selecção de ângulos de câmara enganadores, mas contacto real, ainda que com controle e protecção debaixo da roupa, conforme os casos.

«Fist of Legend» tem uma componente dramática mais bem desenvolvida de que muitos bons filmes de acção "puros", pelo que seria injusto defini-lo como um "mero" bom filme de acção, como por vezes é usual em tom de desculpa pela apreciação de algo sem "mérito artístico" (os ditos "prazeres culposos", se é que a expressão passa bem para o português). Não é, de todo, um filme do qual se possa dizer que a história não tem interesse ou está mal definida, mas que pode ser apreciado apenas pela acção. As duas componentes estão muito bem associadas e as artes marciais, podendo constituir uma razão para nos levar a ver o filme, não se integram num fio narrativo que se limita a avançar da Cena de Acção A para a Cena de Acção B. Não estamos na presença de um bom filme de artes marciais, mas sim de um bom filme.

O vicioso General Fujita Gou (Chow Bei-lei).
Esta obra de Gordon Chan é um dos filmes mais procurados por apreciadores de cinema asiático em geral e de artes marciais em particular, tendo sido, com grande pena de todos, adquirida pela Miramax, que, como é seu apanágio, não disponibiliza a versão original, apenas a remontada e com dobragem em inglês. A criação de uma faixa de dobragem para aqueles que não sabem ou não querem ler (sobretudo os anglófonos que dizem que se quisessem ler, liam um livro, e que não conseguem acompanhar o texto e seguir a acção ao mesmo tempo) constitui naturalmente uma redução da obra original, sendo agravada por casos com o de «Fist of Legend», onde a questão da linguagem tem relevo a nível do guião, ilustrando as especificidades culturais das diversas personagens. É certo que não há um realismo pleno no que a isso toca – o dialecto de Shanghai não é o cantonês, e alguns actores mudam de voz, consoante falam chinês ou japonês – mas há diversos momentos no filme em que a incompreensão entre uns e outros precisa dessa distinção. Há momentos em que a versão inglesa atinge o ridículo, como no tribunal em que temos um intérprete chinês a traduzir os testemunhos para o juiz inglês e se faz a “tradução” de inglês para inglês, ou seja, o homem ouvia muito mal. A sequência inicial dos créditos também ilustra muito bem o que vai na cabeça dessas pessoas: removeram-se os créditos originais e criaram-se outros sobre motivos "orientais", com fumo de incenso por cima. De bradar aos céus.

5
Disponível em DVD francês (HK Vídeo, R2), com muito boa qualidade de imagem e som, com a versão original mono com legendas forçadas em francês e a versão americana Dolby 5.1 no mesmo disco, mais um disco de extras com um documentário, uma entrevista com Gordon Chan, trailers e outras menoridades. Existe uma edição de Taiwan (Ritek, R0), mas com uma pista sonora que anula as diferenças de linguagem (dobrado completamente em mandarim). Alternativas em VHS: MIHK (Reino Unido) ou Chinatown Video (Austrália), sendo talvez difíceis de encontrar ainda no mercado.

publicado online em 1/12/02

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