Honorugai Mizo no Soko Kara [Dark Water]
仄暗い水の底から
Realizado por Nakata Hideo
Japão, 2002 Cor – 102 min.
Com: Kuroki Hitomi, Kanno Rio, Oguchi Mirei, Mizukawa Asami
drama horror fantasmas
DVD
Yoshimi (Kuroki) atravessa um penoso processo de divórcio, o qual a desgasta física e mentalmente, devido ao risco de poder perder a custódia da filha Ikuko (Kanno), de 5 anos. Mãe e filha procuram um novo apartamento, acabando por optar por um situado num edifício antigo. Pouco depois de se instalarem no novo lar, deparam-se com a existência de infiltrações de água a partir do tecto. Enquanto tenta convencer os responsáveis pelo prédio a resolverem o problema, Yoshimi procura um novo emprego. Uma estranha presença começa a fazer-se notar no edifício quase desabitado. Yoshimi, entretanto, descobre que há dois anos atrás morou ali uma família cuja filha pequena desapareceu, sem que nunca viesse a ser encontrada.

Referido como uma ”rotineira história de fantasmas” por um crítico do El País, na altura da sua exibição no Festival de Sitges, «Dark Water» está longe de se reconduzir a um filme de horror estandardizado, desde logo porque assenta sobre um drama familiar credível, que tem o mérito de conseguir envolver o espectador, antes deste, sequer, ter de enfrentar o “horror” propriamente dito. Somos levados a seguir não só a "história de fantasmas", mas também a relação entre mãe e filha, acompanhando as suas angústias, que começam na mais pequena das preocupações (uma mancha de humidade no tecto), passam pelos desenvolvimentos do processo de divórcio e caminham para um contacto com o sobrenatural.

Yoshimi luta pela custódia da filha.
«Dark Water» não deverá desiludir os fãs do brilhante «Ring» (Melhor Filme em Sitges 99, valendo também o prémio de Melhor Realização a Nakata), mas o tom é diverso, apesar de prosseguir na destilação de um horror atmosférico que se desenrola lentamente através da percepção gradual de um cenário sobrenatural e não pela soma de pequenos momentos, a caminho de uma clarificação e resolução de um problema, como é norma no cinema comercial de psicopatas assassinos e monstros. A atmosfera angustiante é introduzida bem cedo, através de um flashback à infância de Yoshimi, onde nos são sugeridas as razões por detrás de uma aparente fragilidade emocional: num final de um dia de forte chuva, a mãe não vem buscá-la, deixando-a sozinha durante horas. Outrora abandonada pela sua mãe, Yoshimi, tudo faz para evitar que a sua filha passe por uma situação similar, o que a leva ao quase desespero quando demora demasiado tempo numa entrevista de emprego.

A relação entre mãe e filha, ilustrada pela relativa banalidade dos seus dia-a-dia – a procura de emprego de uma e a entrada no novo infantário da outra –, vão gerando no espectador uma forte empatia com as personagens, preparando, em crescendo, um segmento final particularmente doloroso. Tal é pouco frequente num filme de género, do qual normalmente não esperamos muito mais do que algumas tentativas, mais ou menos bem sucedidas, de nos assustar. Apesar de estarmos no campo do cinema fantástico, onde o drama é, naturalmente, de mais difícil exequibilidade, «Dark Water» transcende os limites do género e funciona também no nível dramático. Existem alguns momentos de maior impacto, no que ao horror diz respeito, que facilmente deixarão alguma marca no espectador, mas mesmo que o filme se construa de modo a amplificar tal efeito, nunca se reduz a um mero intuito de provocar o choque, nem será isso que, em última análise, retiramos desta experiência.

Tal como «Ring», «Dark Water» volta a ter uma banda sonora de Kawai Kenji – ainda e sempre mais conhecido pela música de «Kokaku Kidotai/Ghost in the Shell» (1995) – e é novamente adaptado de um livro de Suzuki Koji. As personagens principais continuam a inserir-se numa família desagregada, com a acção a ser conduzida por uma mãe motivada pela protecção do(a) filho(a). Em ambas as histórias temos um divórcio – consumado em «Ring»; a decorrer em «Dark Water» – que Nakata usa como ilustração do estilhaçar da esfera de protecção constituída por um núcleo familiar “normal” e equilibrado. Se no filme anterior se sugere a possibilidade de um regresso à estrutura familiar “normal”, ainda que provisório e meramente com vista à resolução do problema que a todos afecta, em «Honorugai Mizo no Soko Kara», o elemento externo – o homem, ex-chefe da família – chega a ser apontado como uma das possíveis ameaças à harmonia familiar (da estrutura familiar reduzida, mãe e filha).

A água é um símbolo clássico do ciclo da vida. Da nascente à foz, do nascimento à morte. Sabemos de onde viemos e para onde vamos e pouco mais do que isso (o pagamento de impostos costuma apontar-se como outra certeza, mas, por cá, isso não se costuma ter por muito seguro, excepto no caso de retenção). Este símbolo pode ser desviado do seu curso, de modo a dar-lhe uma utilidade narrativa algo diversa, como no recente filme de Imamura Shohei, «Água Quente sob a Ponte Vermelha» (título português possível), onde, não deixando de surgir nos termos previamente referidos, é ainda empregue na ilustração do desejo erótico e da consumação de uma relação amorosa. No filme de Nakata, este elemento fulcral da natureza é utilizado no pincelar da atmosfera de horror opressivo, com tal habilidade que um simples gotejar vem constituir um mecanismo capaz de nos manter os nervos à flor da pele. No que toca a reconduzir a água à sua simbologia tradicional, poderemos isolar alguns elementos nos momentos finais de «Dark Water», [Não seleccione o texto que se segue antes do visionamento do filme]
onde se integra um nascimento e um parto: temos um “útero” no depósito de água, “pontapés”, o rebentar das águas (no elevador) e o choro da criança “recém-nascida”, que se agarra à mãe finalmente “reencontrada”. Com isto presente, talvez se possa concluir que o impacte do clímax é reforçado pelo reconhecimento por parte do espectador, ainda que inconsciente, daquilo que aqui está representado.

Há um epílogo que alguns consideram redundante ou um tiro no pé. Mas esse segmento, aparentemente prejudicial ao filme, por parecer constituir uma forma de prolongá-lo desnecessariamente, quando se poderia terminar num momento alto, é mais um mecanismo narrativo que afasta «Dark Water» do cinema de horror convencional e acaba por constituir um posfácio emocional e melancólico do drama vivido nos minutos anteriores. Como comparar tal desenlace com um qualquer flash abrupto, acompanhado por uma explosão de som, a dizer que o horror não terminou, mesmo antes de entrarem os créditos finais? É inegável que estamos num nível narrativo bem superior a tais convenções.

«Dark Water» é uma obra máxima do cinema de horror moderno, provavelmente condenada a passar relativamente despercebida pelo nosso hemisfério, excepto se algum estúdio norte-americano considerar o conceito “engraçado” para mais um remake. Afinal, «The Ring», com base no filme de Nakata, tendo em conta que não possui um nome de primeira linha no cartaz, não se safou nada mal nas bilheteiras norte-americanas.

Galardoado com uma menção especial do júri da selecção oficial do Festival de Cinema da Catalunha (Sitges) e o com o Corvo de Prata no Festival Internacional de Fantasia, Thriller e Ficção Científica de Bruxelas, ambos em 2002.

5
Sitges 2002. Disponível em DVD de Hong Kong (Wide Sight, R3) numa transferência anamórfica, com boa qualidade de imagem, ainda que apresente cores esbatidas e alguma falta de resolução (mas a projecção em Sitges permitiu visionar uma cópia em tudo similar). Som Dolby Digital 5.1 e DTS 6.1 (768 Kbps). Zero extras (excepto se se considerar “acesso a cenas” um extra).

publicado online em 26/12/02

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