Achiwa Ssipak [AAchi & SSipak]
아치와 씨팍
Realizado por Jo Beom-jin
Coreia do Sul, 2006 Cor – 90 min.
Com (as vozes de): Ryu Seong-beom, Im Chang-jeong, Hyeon Yeong, Sin Hae-cheol, Lee Gyu-ha, Seo Hye-jeong, Yang Jeong-hwa, Yu Seong-hyeon
comédia ficção científica acção animação
Poster
Num mundo onde o excremento é a única fonte de energia, o governo distribui pela população gelados viciantes, que servem o propósito de manterem os intestinos em bom funcionamento. Todos os cidadãos têm um chip implantado no ânus para monitorizar a produção e registar os gelados correspondentes. O gang Vojegi ataca veículos de transporte para saciar o vício incontrolável, até que encontram Bela (Hyeon) 1, uma actriz de “cinema exótico” capaz de produzir em grande quantidade. Ao implantarem-lhe um vasto número de chips, o gang fica à espera de um verdadeiro jackpot de gelados. Dois rufias, Aachi (Ryu) e Ssipak (Im) 2 tentam libertá-la das malhas dos criminosos azulados, os quais a polícia reprime violentamente, com armas de fogo e com a entrada em acção de um agente cyborg.

Não me ocorre outro filme em relação ao qual seja mais fácil fazer um trocadilho rasteiro sobre as suas qualidades. Uma sinopse publicada nos registos do KOFIC baptiza a cidade de Shit City (Cidade da Merda) e refere-se à polícia como Dung Patrol (Patrulha do Esterco). Todo o filme é, afinal, sobre defecação. A cópia apresentada no Fantasporto, acompanhada de legendas electrónicas em português, permitia seguir, com algum gracejar, os diálogos escatológicos em duas línguas (três, para quem percebesse os diálogos originais). O que todos procuram é “uma grande descarga” (”a big dump”).

A animação coreana, como é sabido, não tem muita expressão, seja a nível local como internacional. Existem muitos estúdios no território, mas boa parte cumpre contratos de fornecimento de serviços para companhias norte-americanas, para a produção, sobretudo, de séries de televisão; “The Simpsons”, “Family Guy” ou “Kim Possible” são exemplos de produtos americanos cuja animação é realizada na Coreia do Sul. A indústria japonesa recorre também assaz, mesmo que de forma complementar, à mão-de-obra coreana — eficaz e mais barata que a japonesa. A animação de uma longa-metragem nipónica costuma dividir-se por vários estúdios e é comum vermos um coreano nos créditos.

Em 2006, produziram-se duas longas-metragens de animação em película na Coreia do Sul, a que se juntou uma média-metragem em HD. O primeiro filme a estrear foi «AAchi and SSipak», no final de Junho, e o seguinte — «Yobi, the Five-tailed Fox» («Cheonnyeon Yeo'u Yeoubi»), de Lee Seong-gang, realizador de «My Beautiful Girl, Mari» («Mari Iyagi», 2002) — veria a estreia adiada, acabando por se vir a tornar um filme de 2007 e a empobrecer mais as estatísticas.

AAchi & SSipak AAchi & SSipak

«AAchi and SSipak», com um custo de três milhões e meio de dólares americanos, não seria ainda o esperado filme de animação coreano a triunfar nas bilheteiras locais, apesar de uma forte campanha publicitária, que tentou capitalizar na imagem dos actores que deram a voz às personagens, em particular Ryu Seung-beom (AAchi), irmão do realizador Ryu Seong-wan («City of Violence»). O facto do filme se destinar a uma audiência adulta e de ser classificado para maiores de 18 anos (com base em linguagem, violência e alguma nudez) terá impedido a entrada da faixa etária mais disposta a distrair-se com 90 minutos de escatologia animada.

Depois de todas as expectativas criadas pela sinopse do filme e pelo “radicalismo” da atitude anunciada, o filme de Jo Beom-jin 3 revela-se surpreendentemente limpo. Longe de mim querer diminuir as qualidades de um filme por falta de excrescências a conspurcar o ecrã, mas os dejectos são afinal o elemento central, a motivação por detrás do movimento das personagens, o ponto de partida para o tipo de humor pouco sofisticado que permeia toda a sua duração. Afinal, fala-se muito sobre o produto e sobre a produção, mas as cores mais presentes no ecrã são o vermelho do sangue, que jorra com alguma abundância, e o azul dos mutantes Vojegi.

AAchi & SSipak AAchi & SSipak

O realizador afirmou não ter pretendido tecer comentários sociais ao capitalismo ou à sociedade de consumo, ma apenas fazer um filme alegre e divertido. Quando a isso o público não tem motivos de queixa — pelo menos aqueles capazes de rir ou sorrir com o humor infantil aqui presente. A sua irreverência é particularmente apropriada para o público de um festival de cinema, sempre à espera de um corte violento na rotina.

Além do filme ser mais asseado do que a premissa sugeria, sente-se também, a momentos, que as personagens têm as suas extravagâncias cerceadas. Moderação é algo que não esperávamos numa comédia futurista sangrenta onde excrementos humanos são fonte de energia. A obra de Jo Beom-jin pode definir-se como um filme de acção animado, pontuado por piscar de olhos a títulos como «Salteadores da Arca Perdida» ou «Mad Max 2» (ambos de 1981), que foge à normalidade pela banalização da escatologia (mais oral do que visual). Apreciamos a resistência do realizador em levar o projecto por diante, tendo em conta o elevado orçamento (para os padrões locais), mas os maus resultados na bilheteira podem dificultar o financiamento privado de projectos futuros com temas arrojados ou para audiências adultas.

AAchi & SSipak

A animação é de boa qualidade e o design das personagens e o universo que as circunda é atractivo o suficiente para desejarmos ver mais algumas aventuras neste mundo onde excremento é ouro e que corrige o suposto ditado que Maria de Medeiros proferiu em «Henry and June» (1990): “se a merda fosse ouro, os pobres não tinham cu”. Na verdade, e aos argumentistas de «AAchi and SSipak» não falta visão económica, se a merda fosse ouro, os cus dos pobres seriam controlados pelo estado. Esperemos que o filme não seja premonitório, mas o modo como o mercado tem vindo a ser inundado de produtos lácteos que afirmam regular a flora intestinal, pretendem ser saudáveis e nos querem convencer que o seu consumo diário é essencial, pode sugerir uma pausa para reflectir.

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1 Não me recordo ao certo do nome da personagem como aparece nas legendas. Algumas sinopses chamam-lhe “Beautiful”, nos dados do KOFIC, de antes da estreia, o nome havia-se adaptado para “Betsy”. No original é “Ibeuni”, que será um derivado de “bela”.

2 De acordo com um artigo publicado pelo Korea Times e citado em Hancinema.net, os nomes das personagens baseiam-se no termo “rabo” e num palavrão muito comum.

3 O nome do realizador é alternativamente romanizado como Joe Beom-jin, o que me parece contraproducente, dado que Jo é o apelido — induz-se num erro comum ao registá-lo como um nome próprio inglês.

Fantasporto 2007. O DVD coreano foi lançado em Outubro de 2006, quatro meses depois da estreia em Seul.

publicado online em 15/3/07

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